de Igmar Bergman
Bruno
R. Sales
Introdução
“No dia seguinte ninguém morreu” [1]. Assim começa o romance As
intermitências da morte (2005), de José Saramago. A partir dessa simples
frase se desenvolvem as situações absurdas que percorrem todo o livro. Uma
frase que, a princípio, não parece de muita valia, posto que, podem haver dias
em que ninguém morra. Contudo, após essa premissa da história, constata-se que
não haviam mortos porque a própria morte deixara de trabalhar.
Trata-se de um recesso do trabalho
que a morte deu a si mesma para não matar ninguém, porém essa atitude não se
estendeu para toda humanidade, mas tão somente para um determinado país. E
foram dois os recessos descritos na obra, eis o motivo do plural
“intermitências”. Essa atitude tomada por ela tem um fundamento quase que
rancoroso ou qualquer coisa de sentimentalista, pois ela cessa a mortandade
para que os seres humanos reconheçam sua importância para eles, que a valorizem
tanto quanto a vida que desejam. E, de fato, isso vêm a acontecer em certo
momento.
Essa ideia de uma morte
personificada e tomando atitudes profundamente humanas não é novidade no que se
refere a literatura – ou mesmo na cultura em geral – para demonstrar isso,
Saramago a apresenta em sua forma mais caricata: “[...] a imagem da própria
morte que temos diante dos olhos, sentada numa cadeira e embrulhada no seu
lençol, e tendo na orografia da sua óssea cara um ar de total desconcerto” [2]. A morte é um esqueleto
envolto em panos que neste trecho está sentada em seu escritório.
Não é apenas a aparência física da
morte que desperta o interesse, mas principalmente seu modo de agir dentro da
narrativa. Temos uma morte que se denomina “cotidiana”[3] [em diferenciação da Morte
em geral] que toma atitudes humanizantes, de modo muito especial quando ela
assume uma forma humana de mulher, deixando para trás os ossos escondidos sob
os lençóis. Ela age consciente e emocionalmente motivada em suas tarefas. Não
é, pois, uma morte servil, mas dotada de liberdade e consciência, isso fica
evidente por sua livre e cônscia decisão de parar seu trabalho no país a ela
designado. É sob estes aspectos que o presente texto tratará de analisar como a
morte é retratada nessa obra de José Saramago.
A
necessidade de morrer
O ser humano é mortal, nada mais
óbvio que isso. Contudo, raramente se pensa que é necessário que seja desse
modo, isto é, poucas vezes vêm mente do homem que é um princípio fundamental
que ele morra. Isso acontece, em parte, devido ao egoísmo que todos carregamos
de querer viver eternamente nesta terra, sobre este solo. Digo egoísmo porque
na obra de Saramago se revela ser um grande ato egóico querer viver para
sempre, posto que é um fato que se refere ao sujeito em sua vontade particular,
pois no geral vê-se que o não-morrer é um fardo para os outros, que depois se
torna uma insuportável situação até mesmo para aquele que não morre [4]. Por isso, a primeira
forma que ressalto nessa análise sobre a morte saramaguiana é sua importância
para o ser humano.
É necessário que o homem morra. “É
natural, o costume é morrer, e morrer só se torna alarmante quando as mortes se
multiplicam, uma guerra, uma epidemia, por exemplo, isto é, quando saem da
rotina” [5]. De tal modo, a
necessidade que o ser humano tem da morte é posta de antemão a qualquer outro
problema que possa ser visto na narrativa. Isso se vê nas alarmantes cenas que
são protagonizadas pelo governo do país, pela Igreja, pelos filósofos e pelo
setor funerário – que age como representante do setor econômico, i. é, do
comércio com a morte.
No início a situação da greve da
morte é uma coisa comemorada, uma vez que muitos ficam felizes em saber que não
morrerão. Entretanto, a alegria dura pouco. Quando se descobre que os doentes
terminais, os feridos gravemente, aqueles a quem a morte seria um alívio dos
sofrimentos, permanecem vivos a sofrer numa vida eternamente enferma, alarmada
pela condição de jazerem vivos sem esperança de morrerem; os homens se dão
conta que é necessário que se morra, para alívio desses infelizes e dos seus
próximos.
Na narrativa, as implicações da não-morte se dão nos mais variados âmbitos. Na Igreja é preciso morrer para ressuscitar [6]; no governo para que não se acumulem problemas nos hospitais e casas de repouso, no comércio para que as agências funerárias tenham matéria prima para seu trabalho. Quando esses problemas se tornam mais urgentes de se resolverem, é quando os cidadãos desse país se dão conta que a morte é tão importante quanto a vida. A morte, então, recebe o reconhecimento como parte importante do ciclo existencial do sujeito.
A
morte necessitada
O ser humano necessita morrer e a
morte sabe disso. Mas, por outro lado, Saramago coloca uma questão para a
morte: acaso ela necessita de alguma coisa? Num primeiro momento sua
necessidade é de reconhecimento – como visto acima – porém, depois ela sente
outras indigências: cordialidade com os seres humanos, conhecimento sobre a
humanidade, etc. A morte adquire uma face carente, que vai desenvolvendo-se no
decorrer da narrativa e tem seu ápice no final quando, encontrando o
violoncelista que não morre, se transforma na figura humana de mulher. Nessa
metamorfose a morte demonstra sua total antropomorfização, pois é nesse momento
que fica evidente suas carências e nada mais carente no mundo que a humanidade.
Contudo, ela se transforma com o objetivo
de matar quem não morre – o violoncelista – trata-se de um jogo de sedução em
vista do assassinato. A exemplo de uma antiga crença sertaneja, muito explorada
pelo escritor Ariano Suassuna, de que a morte é uma moça caetana de belos seios
expostos para seduzir e matar o homem enquanto copula com ele [7], crença difundida em
outras culturas em suas variações. Até então, tudo parece está nos conformes do
que se espera da morte. Mas, o escritor português surpreende ao aprofundar a
parte carente da morte. Ela transa com o violoncelista [8]. Não sei se pode falar de
amor, porém, se nesse caso puder usar esse termo fica ainda mais robusto o
argumento da morte-carente, pois amar é querer completar-se com algo que lhe
falta.
A necessidade da morte cotidiana está no
fato de ela querer se sentir desejada, e ao que me parece, desejada pela vida.
O violoncelista que não morre é a vida que sempre perdura apesar da finitude. A
pobre morte necessita ser desejada pela vida, assim como o violoncelista a
desejou em seu quarto. E a cena mais impressionante do romance é quando
a morte voltou para a
cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela
que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras [9].
No fim, terminam vida e morte
deitados, um sobre o outro, como um yin e yang, uma harmonia dos contrários. A
vida satisfeita com a morte, e esta última com a vida. Um equilíbrio que se
demonstra em contraponto a toda desordem e perturbação do resto da narrativa. A
morte parece estar feliz, reconhecida como necessária e consciente de ser
necessitada.
Considerações
finais
Vê-se, portanto, que em As
intermitências da morte, a personagem principal é mostrada de dois modos
bem interessantes: necessidade e necessitada. A morte se apresenta como
resposta às carências humanas, mas, paradoxalmente, está também imbuída de
indigências que ela mesma desconhecia, e vai tomando conhecimento de tais
coisas no decurso de suas relações com os seres humanos. Apesar disso ainda é
intrigante a frase final do romance que é mesma do início: “no dia seguinte ninguém
morreu”. Entretanto, porque isso agora? Será que morte ficou satisfeita em
estar com alguém e não quer mais matar por sentir-se completa, isto é, sem
carências? A questão fica suspensa.
*
* *
[1] SARAMAGO, José. As
intermitências da morte. São Paulo, Companhia das Letras, 2005. p. 11.
[2] Ibidem, p. 136.
[3] Ibidem, p. 112.
[4] Por exemplo no
caso do ancião doente que prefere cruzar a fronteira para morrer livrar-se do
sofrimento que permanecer vivo num lugar onde a morte entrou em greve.
[5] Ibidem, p. 16.
[6] Ibidem, p. 36 ss.
[7] cf. SUASSUNA,
Ariano. História d’o rei degolado nas caatingas do sertão: romance
armorial e novela romançal brasileira – ao sol da onça caetana. Rio de Janeiro,
José Olympio, 1977. p. 06.
[8] cf. SARAMAGO,
José. As intermitências da morte. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
p. 207.
[9] Ibidem, p. 207.