sexta-feira, 6 de maio de 2022

NECESSIDADE-NECESSITADA: UMA ANÁLISE SOBRE A PERSONIFICAÇÃO DA MORTE EM “AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE” DE JOSÉ SARAMAGO

 

Cena da "danse macabre" do filme O sétimo selo (1957),
de Igmar Bergman


Bruno R. Sales

Introdução

            “No dia seguinte ninguém morreu” [1]. Assim começa o romance As intermitências da morte (2005), de José Saramago. A partir dessa simples frase se desenvolvem as situações absurdas que percorrem todo o livro. Uma frase que, a princípio, não parece de muita valia, posto que, podem haver dias em que ninguém morra. Contudo, após essa premissa da história, constata-se que não haviam mortos porque a própria morte deixara de trabalhar.

            Trata-se de um recesso do trabalho que a morte deu a si mesma para não matar ninguém, porém essa atitude não se estendeu para toda humanidade, mas tão somente para um determinado país. E foram dois os recessos descritos na obra, eis o motivo do plural “intermitências”. Essa atitude tomada por ela tem um fundamento quase que rancoroso ou qualquer coisa de sentimentalista, pois ela cessa a mortandade para que os seres humanos reconheçam sua importância para eles, que a valorizem tanto quanto a vida que desejam. E, de fato, isso vêm a acontecer em certo momento.

            Essa ideia de uma morte personificada e tomando atitudes profundamente humanas não é novidade no que se refere a literatura – ou mesmo na cultura em geral – para demonstrar isso, Saramago a apresenta em sua forma mais caricata: “[...] a imagem da própria morte que temos diante dos olhos, sentada numa cadeira e embrulhada no seu lençol, e tendo na orografia da sua óssea cara um ar de total desconcerto” [2]. A morte é um esqueleto envolto em panos que neste trecho está sentada em seu escritório.

            Não é apenas a aparência física da morte que desperta o interesse, mas principalmente seu modo de agir dentro da narrativa. Temos uma morte que se denomina “cotidiana”[3] [em diferenciação da Morte em geral] que toma atitudes humanizantes, de modo muito especial quando ela assume uma forma humana de mulher, deixando para trás os ossos escondidos sob os lençóis. Ela age consciente e emocionalmente motivada em suas tarefas. Não é, pois, uma morte servil, mas dotada de liberdade e consciência, isso fica evidente por sua livre e cônscia decisão de parar seu trabalho no país a ela designado. É sob estes aspectos que o presente texto tratará de analisar como a morte é retratada nessa obra de José Saramago.

A necessidade de morrer

            O ser humano é mortal, nada mais óbvio que isso. Contudo, raramente se pensa que é necessário que seja desse modo, isto é, poucas vezes vêm mente do homem que é um princípio fundamental que ele morra. Isso acontece, em parte, devido ao egoísmo que todos carregamos de querer viver eternamente nesta terra, sobre este solo. Digo egoísmo porque na obra de Saramago se revela ser um grande ato egóico querer viver para sempre, posto que é um fato que se refere ao sujeito em sua vontade particular, pois no geral vê-se que o não-morrer é um fardo para os outros, que depois se torna uma insuportável situação até mesmo para aquele que não morre [4]. Por isso, a primeira forma que ressalto nessa análise sobre a morte saramaguiana é sua importância para o ser humano.

            É necessário que o homem morra. “É natural, o costume é morrer, e morrer só se torna alarmante quando as mortes se multiplicam, uma guerra, uma epidemia, por exemplo, isto é, quando saem da rotina” [5]. De tal modo, a necessidade que o ser humano tem da morte é posta de antemão a qualquer outro problema que possa ser visto na narrativa. Isso se vê nas alarmantes cenas que são protagonizadas pelo governo do país, pela Igreja, pelos filósofos e pelo setor funerário – que age como representante do setor econômico, i. é, do comércio com a morte.

            No início a situação da greve da morte é uma coisa comemorada, uma vez que muitos ficam felizes em saber que não morrerão. Entretanto, a alegria dura pouco. Quando se descobre que os doentes terminais, os feridos gravemente, aqueles a quem a morte seria um alívio dos sofrimentos, permanecem vivos a sofrer numa vida eternamente enferma, alarmada pela condição de jazerem vivos sem esperança de morrerem; os homens se dão conta que é necessário que se morra, para alívio desses infelizes e dos seus próximos.

            Na narrativa, as implicações da não-morte se dão nos mais variados âmbitos. Na Igreja é preciso morrer para ressuscitar [6]; no governo para que não se acumulem problemas nos hospitais e casas de repouso, no comércio para que as agências funerárias tenham matéria prima para seu trabalho. Quando esses problemas se tornam mais urgentes de se resolverem, é quando os cidadãos desse país se dão conta que a morte é tão importante quanto a vida. A morte, então, recebe o reconhecimento como parte importante do ciclo existencial do sujeito.

A morte necessitada

            O ser humano necessita morrer e a morte sabe disso. Mas, por outro lado, Saramago coloca uma questão para a morte: acaso ela necessita de alguma coisa? Num primeiro momento sua necessidade é de reconhecimento – como visto acima – porém, depois ela sente outras indigências: cordialidade com os seres humanos, conhecimento sobre a humanidade, etc. A morte adquire uma face carente, que vai desenvolvendo-se no decorrer da narrativa e tem seu ápice no final quando, encontrando o violoncelista que não morre, se transforma na figura humana de mulher. Nessa metamorfose a morte demonstra sua total antropomorfização, pois é nesse momento que fica evidente suas carências e nada mais carente no mundo que a humanidade.

Contudo, ela se transforma com o objetivo de matar quem não morre – o violoncelista – trata-se de um jogo de sedução em vista do assassinato. A exemplo de uma antiga crença sertaneja, muito explorada pelo escritor Ariano Suassuna, de que a morte é uma moça caetana de belos seios expostos para seduzir e matar o homem enquanto copula com ele [7], crença difundida em outras culturas em suas variações. Até então, tudo parece está nos conformes do que se espera da morte. Mas, o escritor português surpreende ao aprofundar a parte carente da morte. Ela transa com o violoncelista [8]. Não sei se pode falar de amor, porém, se nesse caso puder usar esse termo fica ainda mais robusto o argumento da morte-carente, pois amar é querer completar-se com algo que lhe falta.

A necessidade da morte cotidiana está no fato de ela querer se sentir desejada, e ao que me parece, desejada pela vida. O violoncelista que não morre é a vida que sempre perdura apesar da finitude. A pobre morte necessita ser desejada pela vida, assim como o violoncelista a desejou em seu quarto. E a cena mais impressionante do romance é quando

a morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras [9].

            No fim, terminam vida e morte deitados, um sobre o outro, como um yin e yang, uma harmonia dos contrários. A vida satisfeita com a morte, e esta última com a vida. Um equilíbrio que se demonstra em contraponto a toda desordem e perturbação do resto da narrativa. A morte parece estar feliz, reconhecida como necessária e consciente de ser necessitada.

Considerações finais

            Vê-se, portanto, que em As intermitências da morte, a personagem principal é mostrada de dois modos bem interessantes: necessidade e necessitada. A morte se apresenta como resposta às carências humanas, mas, paradoxalmente, está também imbuída de indigências que ela mesma desconhecia, e vai tomando conhecimento de tais coisas no decurso de suas relações com os seres humanos. Apesar disso ainda é intrigante a frase final do romance que é mesma do início: “no dia seguinte ninguém morreu”. Entretanto, porque isso agora? Será que morte ficou satisfeita em estar com alguém e não quer mais matar por sentir-se completa, isto é, sem carências? A questão fica suspensa.


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[1] SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo, Companhia das Letras, 2005. p. 11.

[2] Ibidem, p. 136.

[3] Ibidem, p. 112.

[4] Por exemplo no caso do ancião doente que prefere cruzar a fronteira para morrer livrar-se do sofrimento que permanecer vivo num lugar onde a morte entrou em greve.

[5] Ibidem, p. 16.

[6] Ibidem, p. 36 ss.

[7] cf. SUASSUNA, Ariano. História d’o rei degolado nas caatingas do sertão: romance armorial e novela romançal brasileira – ao sol da onça caetana. Rio de Janeiro, José Olympio, 1977. p. 06.

[8] cf. SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo, Companhia das Letras, 2005. p. 207.

[9] Ibidem, p. 207.

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