segunda-feira, 19 de setembro de 2022

O PECADO DE GREGOR

 


Bruno R. Sales

            Άμαρτία é o termo grego usado para designar pecado. Na tradição judaico-cristã o primeiro casal de seres humanos incorreu num crime em função da quebra de uma regra posta pelo próprio Deus. Eles não poderiam comer do fruto da árvore do conhecimento do Bem e do Mal (cf. Gn. 2). O pecado, nesse contexto, é uma cisão nas relações entre criatura e criador. Contudo, essa não é a única aplicação de significado para esse termo. A Άμαρτία, para Aristóteles, tem um sentido que, mesmo não indo contra às bases da ideia acima mencionada – isto é, um defeito nas relações –, expande o conceito.

            Em sua Poética (cap. XIII), o filósofo escreve:

[…] a situação intermediária, ou seja, aquela do homem que, sem se distinguir muito pela virtude e pela justiça, chega à adversidade não por causa de sua maldade e de seu vício, mas por ter cometido algum erro (Άμαρτία) […] [1]

            O trecho acima descreve o personagem ideal para uma tragédia. Sendo assim, o erro é uma das premissas do trágico. Diferentemente de Adão e Eva, o personagem trágico não incorre necessariamente num crime, mas em um erro, e tal erro pode ser o mais simples possível, trata-se apenas de negligenciar, por um momento, a razão e o discernimento. Por isso, no ideal trágico, o homem não se distingue muito, ele é o meio termo porque pretende demonstrar a humanidade; se fosse muito mal seria um demônio, se fosse muito bom, um anjo, porém, se tratando da medida ele é comum e incorre em erros comuns, mas que podem ser fatais. Somente a humanidade comum peca.

            Nesses termos, Άμαρτία é também tida como desorientação ou, para usar uma palavra mais conveniente, inconsciência. Enquanto para o Judeu-cristão a consciência foi consequência do ato pecaminoso; para os gregos a falta dela é princípio do pecado. Um sujeito inconsciente de sua humanidade, de sua personalidade e de sua racionalidade é um pecador (Άμαρτόλος). O expoente exemplar desse pecador é Gregor Samsa.

            Quando, “certa manhã, ao despertar de um sonho inquieto, Gregor Samsa descobriu-se transformado num insuportável inseto” [2], ele não estranhou sua metamorfose, sua única preocupação continuou sendo o trabalho e a família. Inconsciente de si, ele simplesmente vivia para os outros. De tal modo, Gregor peca por ter esquecido de sua humanidade, a visão que ele teve si como inseto não o aborreceu, nem entristeceu, ele foi indiferente a ela. Não parou para pensar. Samsa não tinha uma vita contemplativa como aquela que os gregos propuseram para exercício da consciência e do pensamento. Ele vivia de trabalhar, sem que tivesse um ócio produtivo para olhar para ele mesmo.

            Apesar de sua alienação, Gregor tem um incentivo para que recorde sua humanidade. Quando seu pai tenta afastá-lo para dentro do quarto, ele arremessa algumas maças contra Gregor-inseto e uma delas lhe atinge nas costas e fica presa a uma ferida. No decorrer da narrativa, sabe-se que esta maçã está apodrecendo em suas costas e ele a sente presa lá.

[…] O ferimento sério, com o qual padeceu mais de um mês – a maçã continuou, uma vez que ninguém se atreveu a retirar, enfiada na carne, como uma recordação exposta –, pareceu fazer até mesmo o pai se lembrar que Gregor, apesar de suas feições asquerosas e deprimentes, era um membro da família. [...] [3].

Essa maçã que o incomoda é o grito que nosso caixeiro-viajante ignora para relembrar que é um homem.

            O pecado da desobediência de Adão e Eva deu, como consequência, a capacidade da humanidade de ter consciência por si e decidir nos parâmetros de seu livre-arbítrio. O fruto proibido – costumeiramente tido como uma maçã – é, nesse contexto, o sinal do nascimento da autoconsciência. Para Gregor, sua inconsciência é um pecado, porque desobedece ao que é humano por natureza: o saber de si. A maçã no meio de uma ferida em suas costas é um apelo para que ele se lembre que é um homem, não um inseto. O homem peca por seu orgulho, mas de modo admirável ele incorre noutro pecado quando deixa de orgulhar-se por ser o que é: humano.



[1] ARISTÓTELES. Poética (bilingue). São Paulo, Editora 34, 2017. p.113.

[2] KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo, Hedra, 2009. p. 29.

[3] KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo, Hedra, 2009. p. 78-79

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