Bruno R. Sales
Fazendo uma genealogia do
poder, o filósofo observou os diversos modos de manutenção da submissão dos
indivíduos na sociedade, através de um exame histórico, utilizando um método
ascendente, partindo da base, analisando a maneira como os mecanismos de
controle puderam funcionar, e ainda, como tais mecanismos, em determinado
momento, relacionados numa gama de factos, viram-se numa conjuntura
economicamente vantajosa e politicamente útil.
O filósofo conclui que é
provável que em certa época tenha surgido uma ideologia da educação, contudo, a
base de tal coisa não seria necessariamente uma ideia, é muito menos e muito
mais do isso. São instrumentos reais de formação e de acumulação do saber:
métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de inquérito e de
pesquisa, aparelhos de verificação. Dessa maneira, é possível perceber que o
poder, para exercer-se nestes mecanismos sutis, é obrigado a formar, organizar
e por em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de saber que não são construções
ideológicas.
Foucault propõe um estudo
sobre o poder fora dos limites do Leviatã hobbesiano, longe dos limites dados
pela jurídica e pelos estamentos. Segundo ele, é preciso estuda-lo a partir das
técnicas e táticas de dominação, isto é, ter como partida a linha metodológica seguida
por ele. Percorrendo, assim, os limites deste método de estudo, o filósofo se
depara com um fato histórico que pode ajudar a compreender os problemas
colocados por ele mesmo, e este é o nascimento da teoria jurídico-política da
soberania, o direito jurídico e político do poder sobre o indivíduo.
Então,
analisando os modos de governos dos séculos XVI ao XVII, ele percebe que, na
sociedade feudal os problemas dados à teoria jurídica e política da soberania
referiam-se de forma direta à mecânica geral do poder, ou seja, sua maneira de
lidar com os problemas recobria a totalidade do corpo social, pois o poder era
exercido de maneira essencial na relação entre o soberano e os súditos.
Contudo, nos séculos XVII e XVIII, ocorreu uma mudança importante, o surgimento
de uma nova mecânica de poder, com procedimentos específicos, instrumentos
totalmente novos e aparelhos bastante diferentes.
Este
novo mecanismo se apoia mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus
produtos, tornando-se, portanto, um meio que permite extrair dos corpos tempo e
trabalho mais do que bens e riquezas. Este mecanismo é exercido e mantido pela
contínua vigilância [pan-óptico], ao invés da descontinuidade por meio de taxas
e obrigações distribuídas de tempos em tempos, de modo que, trata-se muito mais
do que um sistema minucioso de coerções materiais do que a existência física de
um soberano. Por isso, seu princípio é uma nova economia do poder, na qual se
deve propiciar um crescimento das forças dominadas e o aumento da força e
eficácia de quem as domina.
Assim,
a teoria da soberania estava vinculada muito mais com a terra e seus produtos,
de modo que, se referia a apropriação pelo poder dos bens e não trabalho, o que
permitia transcrever em termos jurídicos emitidos descontinuamente tal
apropriação, sem recorrer a algum sistema de vigilância permanente, criando
nesse ponto um calcanhar de Aquiles na sua estrutura.
No
entanto, o novo tipo de poder não está circunscrito em termos da soberania, ele
é um instrumento fundamental para a constituição, principalmente do capitalismo
industrial e do tipo de sociedade a qual corresponde, é um poder alheio à forma
de soberania, e o qual o Foucault chamou de poder disciplinar.
Este
novo poder deveria usurpar o lugar da soberania, porém, ela continuou
existindo, não somente como ideologia, mas também como organizadora dos códigos
jurídicos nascidos no século XIX. O que aconteceu então foi uma relação entre
os dois pontos, de forma que, os sistemas jurídicos permitiram uma
democratização da soberania, através da constituição de um direito público
articulado com a soberania coletiva, no exato momento em que esta
democratização fixava-se profundamente, através dos mecanismos de coerção
disciplinar.
A partir do momento em
que as coações disciplinares tinham que funcionar como mecanismos de dominação
e, ao mesmo tempo, se camuflar enquanto exercício efetivo de poder era preciso
que a teoria da soberania estivesse presente no aparelho jurídico e fosse
reativada pelos códigos. Temos, portanto, nas sociedades modernas, a partir do
século XIX até hoje, por um lado, uma legislação, um discurso e uma organização
do direito público articulados em torno do principio do corpo social e da
delegação de poder; e por outro, um sistema minucioso de coerções disciplinares
que garanta efetivamente a coesão deste mesmo corpo social. Ora, este sistema
disciplinar não pode absolutamente ser transcrito no interior do direito que é,
no entanto, o seu complemento necessário.
Deste modo, é
dentro dos limites da soberania e da disciplina que se dá o exercício do poder,
porém, estes limites não são idênticos, ambas exercem jogos de poderes
diferentes, pois uma se dá pelo direito público da soberania e o mecanismo
poliformo da disciplina. A disciplina porta um discurso que não pode ser o de
direito, pois, seu discurso é alheio ao da lei e da regra, no que toca ao
efeito da vontade soberana. Seu discurso é o da regra natural, assim sendo o da
norma, com a definição de códigos que não serão os da lei, mas o da
normalização, de forma que se referem a um horizonte teórico que não pode ser
baseado no discurso de direito, mas no domínio das ciências humanas. Mas mesmo
estas diferenças não impedem que estes se relacionem, e que por meio desse
relacionamento submetam os indivíduos.