Bruno R. Sales
Introdução
Em carta ao seu amigo Peter Gast,
Nietzsche sentenciou: “A vida sem a música é simplesmente um erro, uma tarefa
cansativa, um exílio” [1]. Esse sentimento pela
música, expresso na correspondência do filósofo, dá pistas do lugar que ela
ocupa no espírito humano. De fato, a modulação dos sons encanta a humanidade
desde os tempos mais antigos. Servindo-se de tal modulação, o ser humano
descobriu uma forma de expressar-se, comunicar-se e, mesmo, religar-se. Essas
competências descobertas por meio da musicalidade foram somadas ao sentimento
religioso inerente ao ser humano. A música encontrou-se com a religião e
adquiriu status de forma de comunicação divina.
As civilizações da antiguidade se
serviram da musicalidade para transmitirem seus mitos e lendas, como por
exemplo, os cantos homéricos da Odisseia e Ilíada. Utilizaram-na também para
louvar e adorar os deuses, implorando-lhes as bençãos vindas deles. Mas, além
do politeísmo antigo, o monoteísmo, de modo específico o Judaísmo bíblico,
encontrou na música uma maneira de exaltação da glória de Deus e expressar a
sabedoria religiosa do povo judeu.
O Cristianismo, como descendente do
Judaísmo, herdou esse caráter musical e deu importância significativa à ars
musicae – tal proeminência podia ser mais acentuada ou mais tênue, a
depender da época. Fato é que a religião cristã influenciou de maneira impar na
composição e na utilização das músicas no Ocidente. Considerando o
estabelecimento do Cristianismo como religião que produziu uma cultura que
durou por dez séculos, não é difícil imaginar que sua influência era
inevitável.
No presente texto, será abordado como a música cristã influenciou na vida religiosa do Ocidente; e como ela ainda influencia nos dias atuais. De antemão, é necessário esclarecer que não pretendo valorar estilos ou composições musicais atribuindo-lhes valor de certo ou errado, válido ou inválido dentro da experiência religiosa. O texto pretende tão somente se deter na fenomenologia das músicas religiosas. Em outros termos, será analisado apenas o impacto que a música proporciona na vida religiosa.
Movimentos
da música religiosa
“A
música é a ciência do bem modular” [2] – Assim a define Santo
Agostinho. Mas, ele não se contenta apenas com esta resposta e reafirma: “A
música é a ciência do bem mover” [3]. O bispo de Hipona referia
esse movimento à dinâmica matemática presente na música: o ritmo, a harmonia, a
frequência vocal, etc. No entanto, esse não é o único movimento presente na
música – a saber: o matemático – de modo que, nesse texto, por movimento da
música, compreendo a ação da música no espírito humano. De tal modo, tomando a
frase de Agostinho, a música é a ciência de bem mover o espírito. Considerando-a
dentro de critérios religiosos, a música tem a pretensão de mover e comover o
espírito humano.
Mas, então, qual é o objetivo da música
como movimento espiritual? Tome-se por pressuposto que “a modulação musical é
um ato que pretende influenciar um ser” [4]. Assim, o propósito da
música como movimento espiritual é instigar o ser religioso no ser humano. Ela
se transforma em recurso para a experiência mística. Tal experiência não se
classifica exclusivamente como extática (êxtase), de modo mais abrangente, ela
se relaciona com a participação integral do sujeito em determinada ação
religiosa, isto é, a experiência mística se classifica como o estar presente de
alma e corpo dentro da atividade religiosa que se realiza. Para o Cristianismo
significa o ex toto corde – de todo o coração (cf. Dt 6,5).
Para a experiência cristã, o ex toto
corde é acompanhado pelo sursum corda – elevai o coração. Isso
significa que o movimento espiritual da música no Cristianismo exige
integralidade do sujeito na ação religiosa e, a partir desta, ele eleva o
coração, isto é, seu ser inteiro para Deus, a quem se dirige a ação. Esse é o
fundamento da música cristã.
A música no Cristianismo adquire, então,
um caráter integrador na comunicação com a divindade, pois, com ela tem-se a
pretensa facilitação da junção entre corpo e espírito. Segundo Ratzinger, a
música visa integrar os sentidos no espírito, de modo que as duas realidades –
espiritual e corporal – se encontrem em unidade na pessoa [5].
Pode-se classificar o movimento espiritual da música cristã em duas categorias, que se distinguem, não por seu fundamento, mas pelo vetor do movimento; são elas: Música de fora para dentro e a música de dentro para fora.
a)
Movimento da música de
fora para dentro
O movimento da música de fora para dentro pode
ser entendido como aquele que parte de fora do sujeito, ou seja, trata-se,
grosso modo, de um tipo de “música ambiente” que o envolve gerando uma espécie
de aura mística ao seu redor. Nesse contexto, a música se torna um instrumento
facilitador de interiorização, transformando o ambiente num lugar apaziguador,
sereno e, por vezes, solene.
Não se deve confundir o papel dessa música
de fora para dentro com uma função extática, de embriaguez; pois, ao invés da
perda dos sentidos – como se espera num estado de embriaguez e êxtase – essa
música no ambiente pretende transportar, ou melhor dizendo, orientar os
sentidos para integração harmônica na ação religiosa. Essa é a visão cristã.
Não se trata de acariciar vã e agradavelmente os ouvidos, mas antes de
transmitir e acompanhar os sentidos, para que o coração seja transportado rumo
ao desejo da harmonia divina, a qual celebra [6].
Portanto, o movimento musical vindo
de fora do sujeito, é caracterizado como um guia espiritual. Em metáfora, é
como se o espírito humano mergulhasse no mistério por meio de uma melodia lhe
conduz durante a ação. Não obstante isso, o mergulho lhe deixa desejos de
harmonia e – arriscando ser muito romântico nas palavras – espírito e música se
tornam um em elevação à divindade.
b)
Movimento da música de
dentro para fora
Sendo o vetorial inverso, o movimento da
música de dentro para fora, parte do interior do sujeito, ou seja, é o movimento
que a música faz a partir da experiência interna do indivíduo, como por
exemplo, as experiências emocionais ou psicológicas. Entretanto, não me refiro
às emoções num sentido sentimentalista, mas como afetividade em si.
Isso significa que, muito além dos
sentimentos, mas considerando o afeto – aqui em um sentido de afetação, isto é,
como o sujeito está sendo afetado pela situação pela qual passa perante à ação
religiosa – a música é, grosso modo, expressiva e poderosamente expressiva [7]. Esse movimento pode ser
caracterizado como um transbordar do ser religioso através da música.
Considere-se assim, no primeiro movimento o sujeito é conduzido por outro, no segundo ele é quem conduz a si mesmo; o sujeito se torna agente ativo daquilo que é musicado. Se no movimento de fora para dentro ele é inserido numa ação religiosa melódica, no movimento de dentro para fora ele mesmo já é essa ação.
Influência
da música na experiência religiosa cristã
Expus, de modo
geral, como compreendo os movimentos musicais e suas relações com o sujeito.
Agora tentarei expor a maneira como esses movimentos influenciam na experiência
religiosa, seja ela particular ou comunitária. Essa influência já está, de
certo modo, exposta nas entrelinhas do que escrevi acima sobre os movimentos de
fora para dentro e de dentro para fora. Contudo, é preciso deixar bem
esclarecido.
O ponto comum a todos os elementos que
compõem a influência musical na experiência religiosa cristã pode ser expresso
em uma palavra: unissonância. No ambiente musical, esse termo significa a ação
de emissão de notas simultâneas. Tomando esse princípio e aplicando-o à
realidade religiosa que tratamos nesse texto, seu significado se transmuta em
outras duas palavras: integralidade e comunhão. A integralidade se refere ao
sujeito atuante na ação religiosa, enquanto a comunhão está atrelada às
relações entre este, e a comunidade terrestre e celeste.
A ideia de integralidade é uma das maiores
influências da música cristã na experiência religiosa, pois, abrindo mão das
músicas extáticas, que promovem transes hipnóticos como meta de contato com uma
realidade transcendental; a ideia cristã de música vê a necessidade de integrar
espírito e corpo numa ação uníssona como comunicação com Deus. Em outras
palavras, para o Cristianismo, corpo e espírito, sentidos e sentimentos,
precisam estar numa espécie de sintonia melódica através da qual,
conscientemente, se eleva o louvor, a prece, etc.
Por
sua vez, a ideia de comunhão, na música, une o sujeito com a comunidade que
canta com ele, e também com os seres celestiais, posto que a teologia cristã
fala dos anjos que cantam na presença de Deus. A comunidade carrega o caráter
histórico, isto é, ela traz consigo a tradição religiosa que deu origem à
música que se entoa; enquanto os seres celestiais, como figuras do futuro
esperado do cristão nos céus, alude à esperança que este tem de cantar na
presença de Deus um dia. Sintetizando estas relações, Ratzinger afirma que, “a
música não é coisa de um instante, mas participação numa história. Ela não é o
fato de um só indivíduo, mas só pode realizar num estarmos-juntos [8]. Agora, recordando a
máxima atribuída a Santo Agostinho: ‘quem canta, reza duas vezes’. Pode-se entender
que o sujeito assim o faz porque cantar, para o Cristianismo, é entoar um
louvor através de dois elementos que rezam em uníssono: os lábios e o coração.
Sendo esses dois elementos –
integralidade e comunhão – a base da influência musical cristã, tem-se ainda os
seus efeitos colaterais, se assim se pode dizer. Tem-se, por exemplo, a
expressão, ao invés da supressão dos sentimentos. Já disse que, na música
cristã, a embriaguez é dispensada pela consciência daquilo que se canta e ouve,
por meio da síntese espírito-corpo. A música, então, se torna forma de
expressão dos sentimentos, ela traduz aquilo que o sujeito quer expressar quando
não consegue articular as palavras para dizer o que sente; é nesse momento que
a música, como expressão dos afetos da alma, dá voz aos sentimentos.
Entretanto, a música religiosa não
inspira, determinadamente, os sentimentos particulares, ela apenas faz fluir a
afetividade sobre a qual os sentimentos podem ser expressos. Segundo Jankélévitch, “a
música não expressa palavra por palavra, não significa ponto por ponto, mas
sugere em linhas gerais: não é feita para traduções justalineares nem para a
confidência das intimidades indiscretas, e sim para evocações atmosféricas e
pneumáticas” [9].
Portanto, em relação aos sentimentos, a música é uma poderosa arma de
manifestação emocional através da afetividade em si que, trazendo para o
contexto religioso, pode ser chamada de religiosidade em si. Em síntese,
a música manifesta a religiosidade como afetividade em si, e nesta o sujeito
traduz seus sentimentos particulares associados à ação religiosa que exerce.
A expressão dos sentimentos acontece
através da persuasão musical, a música persuade e convence a tal coisa.
Considerando os movimentos de fora para dentro e de dentro para fora, ela
começa seu convencimento através da transformação do ambiente pelos sons e
melodias, que, a seu modo, atiçam o sujeito interiormente fazendo-o com que ele
deixe se transformar também pelos sons e melodias. A música deseja gerar
atração religiosa; sua arte de persuadir é passional, não demonstrada
rigidamente [10],
ou seja, não é pelo convencimento de uma argumentação rígida e inegável, mas
por meio da religiosidade em si, que a música convence o sujeito à expressão
dos sentimentos, e assim, influenciando-o em sua ação religiosa.
Graças a essa maleabilidade (não
rigidez) a música consegue atingir pontos-chave no espírito humano, pois ela
adentra e, melodicamente, traduz aquilo que o sujeito não consegue dizer, mas
que sente em seu íntimo. Em determinados contextos, a música é a tradutora do
espírito religioso.
Resumidamente, dentro do contexto
religioso cristão, a música tem como base a unissonância do corpo e do
espírito, e também das comunidades terrestre e celeste. Na ação religiosa, ela
procura gerar um ambiente onde a afetividade em si – religiosidade em si –
propicia um lugar (e/ou momento) no qual o sujeito, encantado e ligado aos sons
e melos, é persuadido a expressar seus sentimentos, de maneira
consciente, elevando o seu espírito. Numa lista de palavras, a influência da
música na ação religiosa cristã é: Unissonância, síntese, integralidade,
comunhão, expressão, consciência e elevação.
* * *
[1] Nietzsche, Cartas
a Peter Gast, Nice, 15 de Janeiro de 1888. in. DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a
música. Imago. p. 2. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/223819178/Nietzsche-e-a-Musica - acesso em: 09
ago 2021.
[2] AGOSTINHO, Santo. A música. São Paulo,
Paulus, 2021. (Patrística 45). p. 42. Disponível em: https://pt.scribd.com/read/512844015/Patristica-A-musica# - acesso em 13
ago 2021.
[3] Ibidem.
[4] JANKÉLÉVITCH,
Vladimir. A música e o inefável. São Paulo, Perspectiva, 2019. p. 52.
Disponível em: https://pt.scribd.com/read/451552808/A-musica-e-o-inefavel - acesso em 13
ago 2021.
[5] cf. RATZINGER,
Joseph. O espírito da música. Campinas – SP, Ecclesiae, 2017. p. 90.
[6] cf. RATZINGER,
Joseph. O espírito da música. Campinas – SP, Ecclesiae, 2017. p. 52.
[7] JANKÉLÉVITCH,
Vladimir. A música e o inefável. São Paulo, Perspectiva, 2019. p. 123.
Disponível em: https://pt.scribd.com/read/451552808/A-musica-e-o-inefavel - acesso em 14
ago 2021.
[8] RATZINGER,
Joseph. O espírito da música. Campinas – SP, Ecclesiae, 2017. p. 90.
[9] JANKÉLÉVITCH,
Vladimir. A música e o inefável. São Paulo, Perspectiva, 2019. p. 115.
Disponível em: https://pt.scribd.com/read/451552808/A-musica-e-o-inefavel - acesso em 18
ago 2021.
[10] cf. Ibidem. p. 78