sexta-feira, 1 de julho de 2022

MÚSICA E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA (Sobre a influência da música cristã na experiência religiosa no Ocidente)

 


Bruno R. Sales 

Introdução

            Em carta ao seu amigo Peter Gast, Nietzsche sentenciou: “A vida sem a música é simplesmente um erro, uma tarefa cansativa, um exílio” [1]. Esse sentimento pela música, expresso na correspondência do filósofo, dá pistas do lugar que ela ocupa no espírito humano. De fato, a modulação dos sons encanta a humanidade desde os tempos mais antigos. Servindo-se de tal modulação, o ser humano descobriu uma forma de expressar-se, comunicar-se e, mesmo, religar-se. Essas competências descobertas por meio da musicalidade foram somadas ao sentimento religioso inerente ao ser humano. A música encontrou-se com a religião e adquiriu status de forma de comunicação divina.

            As civilizações da antiguidade se serviram da musicalidade para transmitirem seus mitos e lendas, como por exemplo, os cantos homéricos da Odisseia e Ilíada. Utilizaram-na também para louvar e adorar os deuses, implorando-lhes as bençãos vindas deles. Mas, além do politeísmo antigo, o monoteísmo, de modo específico o Judaísmo bíblico, encontrou na música uma maneira de exaltação da glória de Deus e expressar a sabedoria religiosa do povo judeu.

            O Cristianismo, como descendente do Judaísmo, herdou esse caráter musical e deu importância significativa à ars musicae – tal proeminência podia ser mais acentuada ou mais tênue, a depender da época. Fato é que a religião cristã influenciou de maneira impar na composição e na utilização das músicas no Ocidente. Considerando o estabelecimento do Cristianismo como religião que produziu uma cultura que durou por dez séculos, não é difícil imaginar que sua influência era inevitável.

            No presente texto, será abordado como a música cristã influenciou na vida religiosa do Ocidente; e como ela ainda influencia nos dias atuais. De antemão, é necessário esclarecer que não pretendo valorar estilos ou composições musicais atribuindo-lhes valor de certo ou errado, válido ou inválido dentro da experiência religiosa. O texto pretende tão somente se deter na fenomenologia das músicas religiosas. Em outros termos, será analisado apenas o impacto que a música proporciona na vida religiosa.

Movimentos da música religiosa    

“A música é a ciência do bem modular” [2] – Assim a define Santo Agostinho. Mas, ele não se contenta apenas com esta resposta e reafirma: “A música é a ciência do bem mover” [3]. O bispo de Hipona referia esse movimento à dinâmica matemática presente na música: o ritmo, a harmonia, a frequência vocal, etc. No entanto, esse não é o único movimento presente na música – a saber: o matemático – de modo que, nesse texto, por movimento da música, compreendo a ação da música no espírito humano. De tal modo, tomando a frase de Agostinho, a música é a ciência de bem mover o espírito. Considerando-a dentro de critérios religiosos, a música tem a pretensão de mover e comover o espírito humano.

Mas, então, qual é o objetivo da música como movimento espiritual? Tome-se por pressuposto que “a modulação musical é um ato que pretende influenciar um ser” [4]. Assim, o propósito da música como movimento espiritual é instigar o ser religioso no ser humano. Ela se transforma em recurso para a experiência mística. Tal experiência não se classifica exclusivamente como extática (êxtase), de modo mais abrangente, ela se relaciona com a participação integral do sujeito em determinada ação religiosa, isto é, a experiência mística se classifica como o estar presente de alma e corpo dentro da atividade religiosa que se realiza. Para o Cristianismo significa o ex toto corde – de todo o coração (cf. Dt 6,5).

Para a experiência cristã, o ex toto corde é acompanhado pelo sursum corda – elevai o coração. Isso significa que o movimento espiritual da música no Cristianismo exige integralidade do sujeito na ação religiosa e, a partir desta, ele eleva o coração, isto é, seu ser inteiro para Deus, a quem se dirige a ação. Esse é o fundamento da música cristã.

A música no Cristianismo adquire, então, um caráter integrador na comunicação com a divindade, pois, com ela tem-se a pretensa facilitação da junção entre corpo e espírito. Segundo Ratzinger, a música visa integrar os sentidos no espírito, de modo que as duas realidades – espiritual e corporal – se encontrem em unidade na pessoa [5].

Pode-se classificar o movimento espiritual da música cristã em duas categorias, que se distinguem, não por seu fundamento, mas pelo vetor do movimento; são elas: Música de fora para dentro e a música de dentro para fora. 

a)      Movimento da música de fora para dentro

O movimento da música de fora para dentro pode ser entendido como aquele que parte de fora do sujeito, ou seja, trata-se, grosso modo, de um tipo de “música ambiente” que o envolve gerando uma espécie de aura mística ao seu redor. Nesse contexto, a música se torna um instrumento facilitador de interiorização, transformando o ambiente num lugar apaziguador, sereno e, por vezes, solene.

Não se deve confundir o papel dessa música de fora para dentro com uma função extática, de embriaguez; pois, ao invés da perda dos sentidos – como se espera num estado de embriaguez e êxtase – essa música no ambiente pretende transportar, ou melhor dizendo, orientar os sentidos para integração harmônica na ação religiosa. Essa é a visão cristã. Não se trata de acariciar vã e agradavelmente os ouvidos, mas antes de transmitir e acompanhar os sentidos, para que o coração seja transportado rumo ao desejo da harmonia divina, a qual celebra [6].

            Portanto, o movimento musical vindo de fora do sujeito, é caracterizado como um guia espiritual. Em metáfora, é como se o espírito humano mergulhasse no mistério por meio de uma melodia lhe conduz durante a ação. Não obstante isso, o mergulho lhe deixa desejos de harmonia e – arriscando ser muito romântico nas palavras – espírito e música se tornam um em elevação à divindade.

b)      Movimento da música de dentro para fora

Sendo o vetorial inverso, o movimento da música de dentro para fora, parte do interior do sujeito, ou seja, é o movimento que a música faz a partir da experiência interna do indivíduo, como por exemplo, as experiências emocionais ou psicológicas. Entretanto, não me refiro às emoções num sentido sentimentalista, mas como afetividade em si.

Isso significa que, muito além dos sentimentos, mas considerando o afeto – aqui em um sentido de afetação, isto é, como o sujeito está sendo afetado pela situação pela qual passa perante à ação religiosa – a música é, grosso modo, expressiva e poderosamente expressiva [7]. Esse movimento pode ser caracterizado como um transbordar do ser religioso através da música.

Considere-se assim, no primeiro movimento o sujeito é conduzido por outro, no segundo ele é quem conduz a si mesmo; o sujeito se torna agente ativo daquilo que é musicado. Se no movimento de fora para dentro ele é inserido numa ação religiosa melódica, no movimento de dentro para fora ele mesmo já é essa ação.

Influência da música na experiência religiosa cristã

            Expus, de modo geral, como compreendo os movimentos musicais e suas relações com o sujeito. Agora tentarei expor a maneira como esses movimentos influenciam na experiência religiosa, seja ela particular ou comunitária. Essa influência já está, de certo modo, exposta nas entrelinhas do que escrevi acima sobre os movimentos de fora para dentro e de dentro para fora. Contudo, é preciso deixar bem esclarecido.

O ponto comum a todos os elementos que compõem a influência musical na experiência religiosa cristã pode ser expresso em uma palavra: unissonância. No ambiente musical, esse termo significa a ação de emissão de notas simultâneas. Tomando esse princípio e aplicando-o à realidade religiosa que tratamos nesse texto, seu significado se transmuta em outras duas palavras: integralidade e comunhão. A integralidade se refere ao sujeito atuante na ação religiosa, enquanto a comunhão está atrelada às relações entre este, e a comunidade terrestre e celeste.

      A ideia de integralidade é uma das maiores influências da música cristã na experiência religiosa, pois, abrindo mão das músicas extáticas, que promovem transes hipnóticos como meta de contato com uma realidade transcendental; a ideia cristã de música vê a necessidade de integrar espírito e corpo numa ação uníssona como comunicação com Deus. Em outras palavras, para o Cristianismo, corpo e espírito, sentidos e sentimentos, precisam estar numa espécie de sintonia melódica através da qual, conscientemente, se eleva o louvor, a prece, etc.

      Por sua vez, a ideia de comunhão, na música, une o sujeito com a comunidade que canta com ele, e também com os seres celestiais, posto que a teologia cristã fala dos anjos que cantam na presença de Deus. A comunidade carrega o caráter histórico, isto é, ela traz consigo a tradição religiosa que deu origem à música que se entoa; enquanto os seres celestiais, como figuras do futuro esperado do cristão nos céus, alude à esperança que este tem de cantar na presença de Deus um dia. Sintetizando estas relações, Ratzinger afirma que, “a música não é coisa de um instante, mas participação numa história. Ela não é o fato de um só indivíduo, mas só pode realizar num estarmos-juntos [8]. Agora, recordando a máxima atribuída a Santo Agostinho: ‘quem canta, reza duas vezes’. Pode-se entender que o sujeito assim o faz porque cantar, para o Cristianismo, é entoar um louvor através de dois elementos que rezam em uníssono: os lábios e o coração.

            Sendo esses dois elementos – integralidade e comunhão – a base da influência musical cristã, tem-se ainda os seus efeitos colaterais, se assim se pode dizer. Tem-se, por exemplo, a expressão, ao invés da supressão dos sentimentos. Já disse que, na música cristã, a embriaguez é dispensada pela consciência daquilo que se canta e ouve, por meio da síntese espírito-corpo. A música, então, se torna forma de expressão dos sentimentos, ela traduz aquilo que o sujeito quer expressar quando não consegue articular as palavras para dizer o que sente; é nesse momento que a música, como expressão dos afetos da alma, dá voz aos sentimentos.

            Entretanto, a música religiosa não inspira, determinadamente, os sentimentos particulares, ela apenas faz fluir a afetividade sobre a qual os sentimentos podem ser expressos. Segundo Jankélévitch, “a música não expressa palavra por palavra, não significa ponto por ponto, mas sugere em linhas gerais: não é feita para traduções justalineares nem para a confidência das intimidades indiscretas, e sim para evocações atmosféricas e pneumáticas” [9]. Portanto, em relação aos sentimentos, a música é uma poderosa arma de manifestação emocional através da afetividade em si que, trazendo para o contexto religioso, pode ser chamada de religiosidade em si. Em síntese, a música manifesta a religiosidade como afetividade em si, e nesta o sujeito traduz seus sentimentos particulares associados à ação religiosa que exerce.

            A expressão dos sentimentos acontece através da persuasão musical, a música persuade e convence a tal coisa. Considerando os movimentos de fora para dentro e de dentro para fora, ela começa seu convencimento através da transformação do ambiente pelos sons e melodias, que, a seu modo, atiçam o sujeito interiormente fazendo-o com que ele deixe se transformar também pelos sons e melodias. A música deseja gerar atração religiosa; sua arte de persuadir é passional, não demonstrada rigidamente [10], ou seja, não é pelo convencimento de uma argumentação rígida e inegável, mas por meio da religiosidade em si, que a música convence o sujeito à expressão dos sentimentos, e assim, influenciando-o em sua ação religiosa.

            Graças a essa maleabilidade (não rigidez) a música consegue atingir pontos-chave no espírito humano, pois ela adentra e, melodicamente, traduz aquilo que o sujeito não consegue dizer, mas que sente em seu íntimo. Em determinados contextos, a música é a tradutora do espírito religioso.

            Resumidamente, dentro do contexto religioso cristão, a música tem como base a unissonância do corpo e do espírito, e também das comunidades terrestre e celeste. Na ação religiosa, ela procura gerar um ambiente onde a afetividade em si – religiosidade em si – propicia um lugar (e/ou momento) no qual o sujeito, encantado e ligado aos sons e melos, é persuadido a expressar seus sentimentos, de maneira consciente, elevando o seu espírito. Numa lista de palavras, a influência da música na ação religiosa cristã é: Unissonância, síntese, integralidade, comunhão, expressão, consciência e elevação.


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[1] Nietzsche, Cartas a Peter Gast, Nice, 15 de Janeiro de 1888. in. DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a música. Imago. p. 2. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/223819178/Nietzsche-e-a-Musica - acesso em: 09 ago 2021.

[2]  AGOSTINHO, Santo. A música. São Paulo, Paulus, 2021. (Patrística 45). p. 42. Disponível em: https://pt.scribd.com/read/512844015/Patristica-A-musica# - acesso em 13 ago 2021.

[3] Ibidem.

[4] JANKÉLÉVITCH, Vladimir. A música e o inefável. São Paulo, Perspectiva, 2019. p. 52. Disponível em: https://pt.scribd.com/read/451552808/A-musica-e-o-inefavel - acesso em 13 ago 2021.

[5] cf. RATZINGER, Joseph. O espírito da música. Campinas – SP, Ecclesiae, 2017. p. 90.

[6] cf. RATZINGER, Joseph. O espírito da música. Campinas – SP, Ecclesiae, 2017. p. 52.

[7] JANKÉLÉVITCH, Vladimir. A música e o inefável. São Paulo, Perspectiva, 2019. p. 123. Disponível em: https://pt.scribd.com/read/451552808/A-musica-e-o-inefavel - acesso em 14 ago 2021.

[8] RATZINGER, Joseph. O espírito da música. Campinas – SP, Ecclesiae, 2017. p. 90.

[9] JANKÉLÉVITCH, Vladimir. A música e o inefável. São Paulo, Perspectiva, 2019. p. 115. Disponível em: https://pt.scribd.com/read/451552808/A-musica-e-o-inefavel - acesso em 18 ago 2021.

[10] cf. Ibidem. p. 78

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