sexta-feira, 17 de junho de 2022

PALADAS DE ALEXANDRIA E OS SUSPIROS DO PAGANISMO

 

Bruno R. Sales

Introdução

            Na história da humanidade é constante o fato de que, em tempos de crise, mudanças radicais inevitavelmente acontecem e dão contornos novos e imprevisíveis para o futuro do homem e sua cultura. Na Antiguidade, o embate do Cristianismo com o mundo pagão – atrelado aos diversos fatores políticos e econômicos – foi causa de enorme crise e de mudança de perspectivas sobre as seculares bases culturais do paganismo.

            Não há como negar o turbulento processo que o mundo pagão tardio sofreu com a ascensão do Cristianismo como religião imperial. Desde o édito de Milão, promulgado por Constantino, os cristãos adquiriam cada vez mais influência e poder e as ideias cristãs se chocavam com as visões de mundo dos não convertidos. Na realidade, se tratava de uma época de transição na qual havia um misto de religiões politeístas que tentavam sobreviver às investidas do monoteísmo cristão.

            Todos os grandes centros da cultura clássica passavam por tensões político-religiosas, de Roma a Jerusalém. Com Alexandria não fora diferente, sendo uma das cidades mais importantes na formação do conhecimento filosófico do Ocidente e parte do Oriente, se encontrava nela também uma das principais sedes episcopais do cristianismo de então, e lá as tensões se tornavam frequentes. É de Alexandria, por exemplo, que temos alguns dos relatos mais vívidos da crise que se abatia sobre a cultura pagã no séc. IV, basta ver as disputas de poder entre o bispo de Alexandria, Cirilo, e o prefeito imperial, Orestes [1].

Em meio a esse contexto de tensões e crises se encontra Paladas. Tendo nascido no tumultuado séc. IV, no ano de 360 [2], ele viu de perto a difícil situação que vivia sua cidade natal, Alexandria. Nesse período, ele desenvolveu sua profissão de gramático e de epigramista, neste último aspecto, sendo considerado como o último dos epigramistas de cultura helênica. De tal modo, nesse texto serão expostos a compreensão que Paladas desenvolveu, em suas poesias, sobre a vida cultural de sua cidade e do mundo pagão tardio. Para tanto, é preciso entender a situação político-religiosa da antiga Alexandria.

Paladas e seu tempo

            Depois da prodigiosa visão de Constantino sobre a ponte Mívia, o Cristianismo ganhou certo apreço por parte do governo romano e algumas de suas autoridades. O Edito de Milão (313 d. C) estabelecia liberdade de culto, anos mais tarde, em Tessalônica assinalavam-no como religião oficial do Império Romano (380 d. C). Assim, de maneira espantosa e inesperada, a religião cristã se viu no topo do poder.

Como é de se imaginar, o séc. IV foi profundamente conflituoso, Roma tentava dar cabo de suas crises econômicas e políticas ao mesmo tempo que tentava governar e proteger os territórios imperiais. Somando-se a isso, o conflito religioso, gerado pelo crescimento do número de cristãos, se desenrolou numa luta entre duas visões de mundos distintas, houve um embate intelectual e cultural (sobre o qual, anos depois, o Cristianismo saiu vitorioso). Nesse contexto, a roda da Fortuna já havia virado e os cristãos transformaram-se em perseguidores dos pagãos, a princípio de modo teórico atacando suas ideias e bases culturais, depois de modo mais agressivo e sangrento.

            Os adeptos do paganismo resistiam como podiam, mas pouca coisa podia ser feita, posto que a religião dos galileus – como chamavam – havia ganhado os bons ares da elite romana. Apesar disso, o imperador Juliano – dito, o apóstata – tentou uma revitalização do paganismo em todo o Império durante seu reinado (361-363 d. C). Ele não conseguiu concretizar seu plano, ao contrário, as chagas abertas entre cristãos e pagãos se inflamaram ainda mais. Contudo, observa Brown que

Até o final do século VI, um amplo círculo de 'helenos' se manteve firme contra essa 'teosofia bárbara': o cristianismo. É uma homenagem ao seu prestígio notar que, no mundo grego, "helênico" era a palavra para "pagão". [...] O paganismo sobreviveu na vida cultural do Império Oriental por muito mais tempo do que no Ocidente: muitos "helenos" amplamente respeitados mantiveram a vida universitária em Atenas, Alexandria e inúmeros centros menores até a conquista árabe [3].

            Alexandria, como reduto da intelectualidade antiga, havia se tornando um lugar de polarização. De um lado, as escolas helênicas sobreviventes e ainda apoiadas na paideia; de outro, a Sé cristã alexandrina, encabeçada por seu patriarca e clero. Alexandria é um caso do que pode acontecer quando o embate de ideias se transforma em conflito cruento e terrorista. Por exemplo,

No final do século IV, os templos dos deuses haviam sobrevivido na maioria das grandes cidades e nos campos circundantes. [...] Para muitos bispos, no entanto, eles representavam uma fonte de “infecção” para suas comunidades. Para os monges eram como a fortaleza de seu inimigo, o diabo. No final do século IV havia aproximadamente dois mil monges a uma distância não muito distante dos grandes templos de Alexandria. Entre esses homens, uma vida de dura obediência e esforço contínuo para controlar seus pensamentos e corpos criaram uma atmosfera de agressividade explosiva dirigida contra o Maligno e seus representantes sobreviventes na Terra. Da Mesopotâmia ao norte da África, uma onda de violência religiosa varreu as cidades e o campo. Em 388 os monges incendiaram uma sinagoga em Calínico, perto do Eufrates; mais ou menos na mesma época em que aterrorizaram os estados-templos da Síria; em 391, o patriarca de Alexandria, Teófilo, convocou-os para "purificar" o grande santuário da cidade de Serápis, o Serapeum [4].

Essa agressividade teve inclusive aprovação imperial, “em 390 o imperador Teodósio I [...] felicitou os cristãos de Alexandria por terem feito justiça com as próprias mãos demolindo o Serapeum, uma das maravilhas do mundo antigo” [5]. Outros acontecimentos se somam a este, como o conflito entre o bispo Cirilo e o prefeito de Alexandria, Orestes. Tal contenda foi causa de grandes estigmas para a Sé cristã alexandrina, em função do episódio do assassinato da filósofa Hipácia, narrada por Sócrates Escolástico:

Havia uma mulher em Alexandria chamada Hipácia, filha do filósofo Theon, que fez tais realizações na literatura e na ciência, a ponto de superar em muito todos os filósofos de seu próprio tempo. [...] Todos os homens, por causa da sua extraordinária dignidade e virtude, admiravam-na ainda mais. No entanto, mesmo ela foi vítima da política ciumenta que na época prevalecia. Pois como ela tinha entrevistas frequentes com Orestes, era caluniosamente relatado entre a população cristã, que foi ela quem impediu Orestes de reconciliar-se com o bispo. Alguns deles, portanto, apressados ​​por um zelo feroz e fanático, cujo líder era um leitor chamado Pedro, a emboscou ao voltar para casa e a arrastou de sua carruagem, eles a levaram para a igreja chamada Cæsareum, onde a despojaram completamente, e então a assassinaram com telhas. Depois de rasgar seu corpo em pedaços, eles levaram seus membros mutilados para um lugar chamado Cinaron, e ali os queimou. Este caso não trouxe menos opróbrio, não só sobre Cirilo, mas também sobre toda a igreja alexandrina [6].

Vê-se, portanto, que Paladas estava em meio a uma cidade – e um mundo – na qual a cultura em que se desenvolveu, isto é, o Helenismo, agonizava frente ao Cristianismo que se estabelecia de maneira vigorosa e violenta. Ele “pertence a uma sociedade que perdeu suas crenças, e sobretudo, a fé em si mesma, porém sua paixão o faz poeta e seus ferozes e iracundos versos se destacam entre o conjunto dos outros versos contemporâneos seus” [7].

A poesia de Paladas e a agonia do paganismo

            A tradição poética dos epigramas remonta suas origens por volta do séc. VIII a. C., sendo uma versificação utilizada para mensagens votivas ou tumulares. Segundo Paes, “essas inscrições eram usualmente em versos, por razões de ordem mnemônica e cultual, [porém] não tardou o epigrama a ganhar autonomia e, deixando de lado sua função pragmática, passar a ser cultivado por si mesmo” [8]. Nessa expressão artística, Paladas, como gramático, se tornou um expoente. Afastando-nos da análise artística e observando sua perspectiva social, os versos paladianos refletem a situação calamitosa de Alexandria e do mundo antigo.

            A visão de mundo destilada da poesia do alexandrino evoca sua percepção sobre os deuses tradicionais – o que afeta na sua ideia sobre a humanidade – e as críticas aos cristãos tumultuadores de sua cidade. Essas duas coisas estão relacionadas pois se trata de uma causa e efeitos, isto é, por causa dos cristãos seus deuses tradicionais já não têm lugar no mundo e o homem tradicional não tem mais sentido. Paladas se inclina ao pessimismo. “Quase não há em seus epigramas uma palavra de esperança ou de benevolência. Aos seus olhos, tudo é vão, o homem nasceu entre lágrimas e entre lágrimas morre, e todas as suas palavras não são mais que o prólogo ao silêncio eterno que o espera” [9].

            Como sinal dos suspiros do paganismo, devido a avassaladora investida do Cristianismo, os deuses do poeta sofrem humilhações e blasfêmias a todo tempo. O crepúsculo dos ídolos é cantado de maneira dramática, sarcástica e melancólica. Em seus epigramas IX, 441 e X, 773, respectivamente, escreve:

Admirou-me ver, nas encruzilhadas, o brôzeo filho

de Zeus, tão invocado outrora, ora por terra,

e irado exclamei: “Oh trilunar que nos guardas dos males

e nunca fostes derrotado, hoje tombastes”.

Mas de noite, ao pé do leito, Herácles disse-me a sorrir:

“Embora deus, aprendi a sujeitar-me aos tempos” [10].


O fundidor de bronze mudou Eros numa frigideira

e não sem razão: ela queima de igual modo [11].

            Para Paladas, os deuses, antes invencíveis e adorados, se viram transformados em derrotados se curvando ao peso dos tempos de mudança vividos pelo poeta. Esse drama se torna ainda maior quando ele escreve sobre a Fortuna. Em verdade, essa divindade pode ser inferida como figura máxima da crise do helenismo retratado em Paladas, pois, frequentemente ela é alvo de seus epigramas. Como estes:


Fortuna que retalhastes sempre a vida,

Desnaturando-lhe o vinho sem mistura,

Agora taverneira, não mais deusa,

Te dedicas a misturar e a servir,

Tens ofício mais conforme teu caráter.

(Epigrama, IX, 180)

Ao que me parece, transtornaram-se as coisas,

Ora que vemos a Fortuna infortunada.

(Epigrama, IX, 181)

E tu, senhora Fortuna, que má fortuna tiveste?

Fez-se infortunada a que outorga fortunas?

Aprende tu também a suportar os vaivéns, as quedas

Infortunadas que preparas aos outros.

(Epigrama, IX, 182) [12].

            A constatação é que a deusa que dava os rumos do destino dos homens e do mundo, se viu ela mesma destinada à queda, sendo vítima, por assim dizer, de seu próprio poder. Paladas dá à Fortuna os contornos de uma mortal que, do mesmo modo que ele, padece dos sofrimentos e intempéries do tempo. Esse é um dos motivos do pessimismo paladiano, se os deuses não resistiram, sendo descartados de maneira arbitrária de sua cultura e de seu mundo de vida, o que pode o homem senão reconhecer que, sendo menor que os deuses, é mais nada que o nada deles?

            A Fortuna desafortunada é selo que marca, nos epigramas, o helenismo decadente. Uma cultura que florescera de modo admirável, se via, naquela circunstância, em declínio e vítima de vandalismo e terrorismo por parte de cristãos violentos por seu zelo excessivo à sua fé. Em função disso, o epigramista não enxerga esperança, nem para si, nem para a tradição em que cresceu e viveu, só lhe resta o vinho [13] – servido pela taverneira Fortuna – que alivia as dores do mundo e reprime sua infelicidade e a certeza que a finitude é consolo para o homem e para tudo que esteja sujeito à vida [14], inclusive os deuses.

Considerações finais

            Nesse texto, de modo muito geral, vimos como o mundo helênico sofreu, em seus últimos anos, com a repentina ascensão do Cristianismo; e a forma como isso refletiu na poesia epigramista de Paladas de Alexandria. Segundo Fernanda L. Lima, “a literatura paladiana é incômoda e, em alguns momentos, repulsiva no seu trato de temas inquietantemente cotidianos. Mas de uma cotidianidade nada corriqueira. Ao contrário, uma vida real em xeque por conta das crises que assolam seu tempo, com tantas mudanças violentas” [15].

Uma cidade instável e envolta em crises, somada às convulsões de uma civilização que mudava drasticamente sua visão de mundo e sua forma cultural, esse foi o cenário no qual viveu Paladas. Chega ser irônico que o mesmo estilo epigramático de poesia, utilizado em suas origens para compor epitáfios, se torne, na obra de Paladas, uma espécie de inscrição para lápide do paganismo; pois ele vê a agonia e ultimações de sua cultura e de seu mundo tradicional. Eis a razão para que ele escreva:


Acaso estamos mortos e só aparentamos

Estar vivos, nós gregos decaídos em desgraças,

Que imaginamos a vida semelhante a um sonho,

Ou estamos vivos e foi a vida que morreu?

                                               (Epigramas, X, 82[16])

 



[1] Cf. Socrates Scholasticus, Ecclesiastical Histories. Lib. VII, Cap, XIII – disponível em: https://pt.scribd.com/document/32238683/Socrates-and-Sozomenus-Ecclesiastical-Histories - acesso 13 jun. 22.

[2] A data de nascimento de Paladas pode variar, para C. M. Bowra tal fato se deu no ano 316 e sua morte em um dos anos finais do séc. IV. Em outros casos, alguns autores situam seu nascimento em 360 e sua morte no ano 430.

[3] BROWN, Peter. El mundo de la Antigüedad tardía: de Marco Aurelio a Mahoma. Madrid, Editorial Gredos S. A, 2012.  p. 76

[4] Ibid.  p. 102

[5] Ibid.  p. 103

[6] Socrates Scholasticus, Ecclesiastical Histories. Lib. VII, Cap, XV – disponível em: https://pt.scribd.com/document/32238683/Socrates-and-Sozomenus-Ecclesiastical-Histories - acesso 13 jun. 22.

[7] BOWRA, C. M. La literatura griega. México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1958. p. 194.

[8] PAES, José Paulo. Paladas e a tradição do epigrama. In: PALADAS DE ALEXANDRIA. Epigramas. São Paulo, Nova Alexandria, 1993. p. 16

[9] BOWRA, C. M. La literatura griega. México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1958. p. 194.

[10] PALADAS DE ALEXANDRIA. Epigramas. São Paulo, Nova Alexandria, 1993. p. 57.

[11] Ibid. p. 59.

[12] Ibid. p. 53.

[13] Cf. Ibid. p. 47. Epigrama, V, 72.

[14] Cf. Ibid. Epigramas, X, 45; X, 58-59; X, 72; X, 77-79.

[15] LIMA, Fernanda L. Paladas de Alexandria: A poesia em tempos de ruptura. In: Calíope: presença clássica / Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas, Departamento de Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vol. 22 p. 45-58, 2011. p. 55

[16] PALADAS DE ALEXANDRIA. Epigramas. São Paulo, Nova Alexandria, 1993. p. 71.

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