sexta-feira, 25 de março de 2022

“AGONIA DE UM FILÓSOFO”: AUGUSTO DOS ANJOS E A LUTA DA HUMANIDADE

 



Bruno R. Sales

Introdução

            Em 1912 Augusto dos Anjos publica seu primeiro – e único – livro de poesia, Eu. Incompreendida, rechaçada pela crítica da época, considerada inclassificável nos parâmetros das escolas de literatura, a obra de Augusto ficou dividida entre os que a ignoravam e os que a admiravam. De tal modo, não tendo ganhado o apreço dos grandes literatos do começo do século XX, que se concentravam na cidade do Rio de Janeiro, centro litero-cultural do Brasil até então, a poesia augustiana foi relegada ao esquecimento nas mentes dos intelectuais daquela época.

            O fracasso do livro desanima o autor que, embora não tenha parado de compor, não tentou reeditá-lo. Quanto a isso, é necessário considerar que, se acaso Augusto dos Anjos tivesse a pretensão de uma nova publicação do Eu, ele não tivera tempo, pois morrera de pneumonia, aos 30 anos, em 1914. Entretanto, anos depois, aparece nas estantes das livrarias brasileiras uma nova edição do livro – feita pelo amigo do poeta, Orris Soares –, porém, acrescentado as poesias não publicadas da primeira vez, assim surgiu o Eu: poesias completas (1920).

            Dessa vez, o ressurgimento da obra de Augusto dos Anjos acontece nas camadas mais populares, ao invés da aristocracia literária. O autor, com seu estilo diferente, encanta o povo e por ele é redescoberto. Em função disso, postumamente, o poeta paraibano recebe o devido reconhecimento dos poetas e literatos brasileiros.

            Mas o que fez com Augusto dos Anjos fosse redescoberto pelo povo? Que aspectos de sua poesia poderia ter cativado as pessoas? Pode-se elencar variados elementos que servem como exemplo – linguagem interessante, estilo diferente, conteúdo com novidade – porém, me deterei apenas em dizer que Augusto cativou o povo, porque o conteúdo de seus poemas é a realidade humana nua e crua, isto é, a certa distância do romantismo e do parnaso dos sentimentos; o poeta do trágico fala aos seres corporais – finitos e mortais – dotados de uma energia (espírito) que os movimenta por um determinado período de tempo sobre esta terra, até que estes mesmos seres sejam sucumbidos pela morte e passem a estar sob esta terra. Augusto fala sobre a finitude, a angústia e a agonia do ser humano diante de tudo que lhe rodeia. O poeta conversa de mortal para mortal, “duma caveira para outra caveira” [1].

            No presente texto, abordaremos a poesia de Augusto dos Anjos sob a perspectiva da agonia da humanidade, isto é, partir-se-á do pressuposto de que para o autor o ser humano vive agoniado para entender a vida, no entanto, não obtém sucesso, e se o consegue é parcialmente. Para tanto, num primeiro momento se dissertará sobre como o ser humano tem consciência dessas realidades, isto é, consciência de finitude. Em seguida, tratar-se-á de como o ser humano reage à chegada da consciência de finitude, tendo como enfoque o conceito de “agonia”. Isso tudo sob o olhar adquirido através da poética augustiana.

A consciência de ser finito

            “Sou uma sombra!” [2] – Assim Augusto dos Anjos inicia seu livro de poesias. O poeta paraibano deixa de antemão qual será seu objeto de fala, seu conteúdo e ambiente de inspiração: a humanidade tal qual ela é, uma sombra. Em outros termos, o homem mortal, finito. Esse início tem um caráter interessante, como aponta Fabiano Calixto na introdução que fizera para uma das edições do livro:

Como aponta Sérgio Alcides... num “livro cujo título é um pronome pessoal (Eu), a primeira palavra do primeiro poema é um verbo conjugado na pessoa correspondente: ‘sou’”. Quer dizer, dentre os múltiplos epítetos, encontráveis no volume, o enunciador primeiro nos mostra aquele que provavelmente o definirá melhor: eu sou uma sombra [3].

            A ideia de finitude permeia a obra augustiana, mas não em um sentido de sentimentalização do fim da vida, como fez a escola romântica; a poesia de Augusto trata a finitude quase como uma revelação (apocalipsis), isto é, ele faz uma reflexão da existência, que partindo da matéria, comunica – ou revela – ao espírito humano que em determinado momento haverá a cisão entre ele e seu corpo, e que este mesmo corpo se decomporá. A decomposição e a podridão são os ângulos pelos quais o poeta faz sua reflexão sobre a realidade. “É uma leitura de mundo pela base, onde mais fede. Bate-se onde mais dói” [4]. Isso se nota por exemplo quando se lê no poema As cismas do destino:


Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo

A apodrecer!… És poeira, e embalde vibras! [5]

            Ou ainda nos versos de Monólogo de uma sombra:

Como um pouco de saliva quotidiana

Mostro meu nojo à Natureza Humana.

A podridão me serve de Evangelho... [6]

            Não só isso, como também as analogias que o poeta paraibano faz para demonstrar a ideia de podridão como sendo meio de revelação sobre a realidade da finitude do ser humano. Ao compará-la, por exemplo, com os óvulos infecundos que são expelidos na menstruação, dando a entender que a vida se acaba aos moldes dessa reação corporal das mulheres:


Dissolva-se, portanto, minha vida

Igualmente a uma célula caída

Na aberração de um óvulo infecundo [7].

            A revelação do fim, proposta na poesia augustiana, possui um caráter de ser tomado de assalto; em outros termos, se trata da insurgência e arrebatamento repentino da consciência do finito no próprio sujeito, como se pode ler:

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.

Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:

Na bruta ardência orgânica da sede,

Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.


“Vou mandar levantar outra parede...”

 – Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho

E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,

Circularmente sobre a minha rede!


Pego de um pau. Esforços faço. Chego

A tocá-lo. Minh’alma se concentra.

Que ventre produziu tão feio parto?!


A Consciência Humana é este morcego!

Por mais que a gente faça, à noite ele entra

Imperceptivelmente em nosso quarto! [8].

Esse morcego invasivo é figura da revelação assaltante da finitude do humano. A consciência de ser finito é o ponto de partida para toda reflexão humana. Entretanto isso não ocorre em um primeiro momento, pois, antes do mais vem a consciência que se é, isto é, o cogito de existência. Ao reconhecer-se como existente, a reflexão sobre o fim chega à mente humana. Tal reflexão é o Último credo expresso pelo poeta do trágico:


Como ama o homem adúltero o adultério

E o ébrio a garrafa tóxica de rum,

Amo o coveiro – este ladrão comum

Que arrasta a gente para o cemitério!


É o transcendentalíssimo mistério!

É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,

É a morte, é esse danado número Um

Que matou Cristo e que matou Tibério!


Creio, como o filósofo mais crente,

na generalidade descrente

Com que a substância cósmica evolui... [9]

A visão de mundo proposta na poesia augustiana é unificada e unificante, pois, não considera o ser humano separado – ou sublimado, melhor dizendo – ela trata o homem, antes de tudo como parte do processo natural de nascer, crescer, reproduzir e morrer. Num primeiro momento a antropologia de Augusto dos Anjos enxerga no humano os aspectos materiais, seja seus elementos químicos ou suas reações biológicas, como também seus instintos e apetites próprios do homo naturalis. A animalidade do homem é posta como condição primordial de toda a sua relação com a realidade, desse modo, ele sente o animalesco latente em seu ser:


O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera [10].


Tal uma horda feroz de cães famintos,

Atravessando uma estação deserta,

Uivava dentro do eu, com a boca aberta,

A matilha espantada dos instintos! [11].

No entanto, apesar de abordar o homem como animal dentro da natureza, o poeta não deixa de tratá-lo de modo diferente, pois ele sabe que existe um fator que separa a humanidade da animalidade (naturalidade): a sua racionalidade.

Como Pascal fizera em seus Pensamentos[12] colocando o ser humano como o meio termo do finito e infinito (Nada e Tudo), e como aquele que pode conhecer – toma consciência – razoavelmente um pouco de ambas as coisas; Augusto – imbrincado a esse pensamento pascalino, porém, tratando-os como Contrastes[13] – também põe na racionalidade seu aspecto de despertar, isto é, seu caráter consciencioso, de modo especial, consciência de finitude; isso é o que se vê nos versos de Os doentes [14]:

E esfregando as mãos magras, eu, inquieto,

Sentia, na craniana caixa tosca,

A racionalidade dessa mosca,

A consciência terrível desse inseto!

O doente, o vencido, a sombra – todos são sinônimos do sujeito que despertou para consciência de finitude graças a “revelação” da mesma. Um sujeito de tal modo estupefato pela descoberta que se vê numa condição de não compreensão do mundo em que vive. A fatídica incapacidade de entender os mistérios que envolvem o mundo. Talvez, porém, os mistérios possam parecer distantes, porém, essa incapacidade de compreensão se detém também nos detalhes do cotidiano que passam despercebidos, mas que, a seu modo, escancaram a quem os vê a sua pequenez e finitude. O véu de Isis é removido, por exemplo, ao simples olhar para a lua cheia (plenilúnio):


Tal qual quem para o próprio túmulo olha,

Amarguradamente se me antolha,

À luz do americano plenilúnio,


Na alma crepuscular de minha raça

Como uma vocação para a Desgraça

E um tropismo ancestral para o Infortúnio [15].

O tropismo significa o movimento natural para o fim. Eis, então, o homem diante da consciência de morte. Contempla-se a si mesmo na natureza, e sente como se seu corpo tivesse saudade dos elementos que lhe compõe, “um velhíssimo instinto atávico, a saudade inconsciente da monera” [16]. E eis o ser humano perante os mais simples acontecimentos do dia a dia, todavia, anunciadores de mistérios; porque não há nada tão simples que não seja misterioso, como é visto em Mistérios de um fósforo [17]. O ser humano agoniza como um filósofo em busca de respostas que não se podem obter; cabe-lhe, então, somente olhar para a questão e colocar-se de fronte a ela.

Agonia de um filósofo

            O mistério envolve o ser humano. Apesar da consciência de finitude, ele não consegue compreender tudo aquilo que se levanta como questão: Qual sua origem? Qual seu fim? Porque essa realidade? Isso significa que, atrelado à finitude, está o mistério das coisas.

             O espanto perante as situações simples da vida, das observações óbvias e das constatações da decadência do corpo e do espírito, faz com que o homem se veja impotente diante do mundo. Como o Sísifo de Albert Camus, o sujeito augustiano se vê jogado diante da absurdidade do mundo e de sua incapacidade de compreender até mesmo as realidades que a seu ver estão plenas de obviedade.

            Diante dessa situação todo o conhecimento que o ser humano tem, aparece como sendo mínimo, tênue e rasteiro. Por isso, o poeta paraibano descreve-o como um agoniado diante daquilo que pode ser conhecido e o que pode conhecer:


Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto

Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...

O Inconsciente me assombra e eu nele rolo

Com a eólica fúria do harmatã inquieto!


Assisto agora à morte de um inseto!...

Ah! todos os fenômenos do solo

Parecem realizar de pólo a pólo

O ideal do Anaximandro de Mileto!


No hierático areópago heterogêneo

Das idéias, percorro como um gênio

Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...


Rasgo dos mundos o velário espesso;

E em tudo igual a Goethe, reconheço

O império da substância universal![18]

            A agonia do filósofo é figura da inconsolação da filosofia, isto é, “o filósofo se dá conta da sua insuficiência diante da incompreensão do mundo, e a ânsia pelo absoluto fracassa na limitação do ser humano, como se o verdadeiro conhecimento fosse inalcançável ao homem”[19]. É dessa situação que nasce a agonia. Contudo, para compreender melhor ao que o termo agonia se refere neste texto, tome-se sua etimologia:

A palavra agonia vem do grego ἀγών (agón - luta). Refere-se à angústia que uma pessoa sofre quando está à beira da morte. Isto é, quando está lutando por sua vida. A palavra grega ἀγών se relaciona com a raiz indo-europeia: ag- (conduzir), presente no latim agere (levar a cabo) [20].

            Considerando a origem do termo, tem-se dois elementos pelos quais se deve entende-lo: luta e condução. Agonia, portanto, é uma ação do sujeito diante do mundo e um agente no espírito humano. Em outros termos, agonia é a luta do homem por compreender o mundo e a si mesmo, que enquanto não encontra compreensão agoniza. Por outro lado, ela é um agente, na qualidade daquela motivação que convida e conduz o agonizante à luta. Por essa razão, a consciência da finitude, que é princípio de questionamentos profundos na vida humana, é também princípio da agonia, pois aí se inicia a luta pela busca de compreensão de si e do mundo circundante.

A agonia é uma tensão de vida-morte, pois ela comporta esses dois elementos e sobre eles estimula o movimento relacional. De tal modo, a morte – como consciência do fim – age como o estímulo para a vida, enquanto se considera a agonia como agente. Enquanto ação, a agonia associa-se à vida que luta para manter-se diante do mistério da existência finita. Este é, portanto, o movimento relacional do binômio vida-morte.

Voltando ao poema de Augusto dos Anjos, o filósofo lá descrito – imagem de uma humanidade desamparada de respostas – percorre um caminho que se pode traçar pelos verbos conjugados com a primeira pessoa do singular no presente do indicativo: Consulto, leio, consolo, rolo, assisto, percorro, rasgo e reconheço. A consulta e leitura dos antigos sábios, a não-consolação encontrada, o ato de rolar no próprio inconsciente em busca das respostas, o assistir os últimos instantes de vida de um inseto – e esse é o destarte para o fim, a revelação da finitude – o percurso pelas ideias que entram no processo do rasgo do véu espesso, até a culminância do reconhecimento da finitude, da limitação, da morte. Esse é o itinerário proposto no poema. Tal caminho é causa de desemparo. Vive-se, consciente ou inconscientemente, em agonia. Agonia celular, sistêmica e mesmo espiritual. Morre-se, consciente ou inconscientemente, agonizando aos poucos, agonizam células, fibras e partes do espírito. Essa é uma leitura do filósofo que fala no poema.

Considerações finais

            “Mas sentir-se, como humanidade (e não somente como indivíduo), tão esbanjado como vemos a florescência isolada ser esbanjada pela natureza, é um sentimento acima de todos os sentimentos. – Mas quem é capaz dele? Certamente apenas um poeta: e poetas sabem sempre consolar-se” [21]. Essa é a maneira de Nietzsche se referir aos poetas: como aqueles que sintetizam os sentimentos da humanidade e expressam-nos esteticamente consolando-a.

            Augusto dos Anjos – que longe de parecer querer consolar – sintetiza o sentimento de finitude de cada ser humano.  A poética augustiana redescobre em cada verso a máxima quaresmal do cristianismo: Lembra-te, homem, que és pó, e ao pó te hás de voltar (cf. Gn 3,19). Sua obra é um monumento ao memento mori. Por isso, quando a revelação – consciência – do fim é efetuada, o passo seguinte é a aceitação desse mesmo estado, trata-se do “acostuma-te à lama que te espera!” [22].

            A partir da finitude posta à sua frente, o ser humano inicia seu processo de agonia, isto é, de luta pela compreensão de si e do mundo, enquanto é motivado pelo seu ser finito: eis a síntese posta por Augusto no poema Agonia de um filósofo. O poeta paraibano parte do particular para o geral, pois o sofrimento, a morte e, sobretudo, a agonia, atesta a unidade de toda humanidade. Um é o agoniado, porque todos o são.


*        *        * 



[1] Idealismo. in: ANJOS, Augusto dos. Eu. São Paulo, Hedra, 2012. p. 100.

[2] Monólogo de uma sombra. Ibid. p. 63.

[3] CALIXTO, Fabiano. Augusto dos Anjos ou apocalipsis litteris. Ibid. p. 20-21.

[4] Ibid. p. 24.

[5] As cismas do destino. Ibid. p. 93.

[6] Monólogo de uma sombra. Ibid. p. 64.

[7] Budismo moderno. Ibid. p. 95.

[8] O morcego. Ibid. p. 71.

[9] Último credo. Ibid. p. 101.

[10] Versos íntimos. Ibid. p. 153.

[11] As cismas do destino. Ibid. p. 82.

[12] “Afinal, que é o homem dentro da natureza? Nada em relação ao infinito; tudo em relação ao nada; um ponto intermediário entre tudo e nada. […] é-lhe (igualmente) impossível ver o nada de onde saiu e o infinito que o envolve”. PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo, Abril Cultural, 1984. p. 52.

[13] In: ANJOS, Augusto dos. Eu. São Paulo, Hedra, 2012. p. 133.

[14] Ibid. p.  117.

[15] Monólogo de uma sombra. Ibid. p. 64.

[16] Os doentes. Ibid. p.  114.

[17] Ibid. p. 179-182.

[18] Agonia de um filósofo. Ibid. p. 70.

[19] SOUZA, Gustavo Ramos de. O poeta do hediondo – A agonia de Augusto dos Anjos. 2009 – Disponível em: http://reproduction-inderdite.blogspot.com/2009/10/o-poeta-do-hediondo-agonia-de-augusto.html - acesso 28 jul 2021.

[20] Etimologia da palavra agonia: Disponível em http://etimologias.dechile.net/?agoni.a

[21] NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. in: Friedrich Nietzsche: Obras incompletas. São Paulo, Nova Cultural, 1999. p. 76. (Os Pensadores)

[22] Versos íntimos. Ibid. p. 153.

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