Bruno R. Sales
Introdução
Em 1912 Augusto dos Anjos publica
seu primeiro – e único – livro de poesia, Eu. Incompreendida, rechaçada
pela crítica da época, considerada inclassificável nos parâmetros das escolas
de literatura, a obra de Augusto ficou dividida entre os que a ignoravam e os
que a admiravam. De tal modo, não tendo ganhado o apreço dos grandes literatos
do começo do século XX, que se concentravam na cidade do Rio de Janeiro, centro
litero-cultural do Brasil até então, a poesia augustiana foi relegada ao
esquecimento nas mentes dos intelectuais daquela época.
O fracasso do livro desanima o autor
que, embora não tenha parado de compor, não tentou reeditá-lo. Quanto a isso, é
necessário considerar que, se acaso Augusto dos Anjos tivesse a pretensão de
uma nova publicação do Eu, ele não tivera tempo, pois morrera de
pneumonia, aos 30 anos, em 1914. Entretanto, anos depois, aparece nas estantes
das livrarias brasileiras uma nova edição do livro – feita pelo amigo do poeta,
Orris Soares –, porém, acrescentado as poesias não publicadas da primeira vez,
assim surgiu o Eu: poesias completas (1920).
Dessa vez, o ressurgimento da obra
de Augusto dos Anjos acontece nas camadas mais populares, ao invés da
aristocracia literária. O autor, com seu estilo diferente, encanta o povo e por
ele é redescoberto. Em função disso, postumamente, o poeta paraibano recebe o
devido reconhecimento dos poetas e literatos brasileiros.
Mas o que fez com Augusto dos Anjos
fosse redescoberto pelo povo? Que aspectos de sua poesia poderia ter cativado
as pessoas? Pode-se elencar variados elementos que servem como exemplo –
linguagem interessante, estilo diferente, conteúdo com novidade – porém, me
deterei apenas em dizer que Augusto cativou o povo, porque o conteúdo de seus
poemas é a realidade humana nua e crua, isto é, a certa distância do romantismo
e do parnaso dos sentimentos; o poeta do trágico fala aos seres corporais –
finitos e mortais – dotados de uma energia (espírito) que os movimenta por um
determinado período de tempo sobre esta terra, até que estes mesmos
seres sejam sucumbidos pela morte e passem a estar sob esta terra.
Augusto fala sobre a finitude, a angústia e a agonia do ser humano diante de
tudo que lhe rodeia. O poeta conversa de mortal para mortal, “duma caveira para
outra caveira” [1].
No presente texto, abordaremos a
poesia de Augusto dos Anjos sob a perspectiva da agonia da humanidade, isto é,
partir-se-á do pressuposto de que para o autor o ser humano vive agoniado para
entender a vida, no entanto, não obtém sucesso, e se o consegue é parcialmente.
Para tanto, num primeiro momento se dissertará sobre como o ser humano tem
consciência dessas realidades, isto é, consciência de finitude. Em seguida,
tratar-se-á de como o ser humano reage à chegada da consciência de finitude,
tendo como enfoque o conceito de “agonia”. Isso tudo sob o olhar adquirido através
da poética augustiana.
A
consciência de ser finito
“Sou
uma sombra!” [2]
– Assim Augusto dos Anjos inicia seu livro de poesias. O poeta paraibano deixa
de antemão qual será seu objeto de fala, seu conteúdo e ambiente de inspiração:
a humanidade tal qual ela é, uma sombra. Em outros termos, o homem mortal, finito.
Esse início tem um caráter interessante, como aponta Fabiano Calixto na
introdução que fizera para uma das edições do livro:
Como aponta Sérgio
Alcides... num “livro cujo título é um pronome pessoal (Eu), a primeira
palavra do primeiro poema é um verbo conjugado na pessoa correspondente:
‘sou’”. Quer dizer, dentre os múltiplos epítetos, encontráveis no volume, o
enunciador primeiro nos mostra aquele que provavelmente o definirá melhor: eu
sou uma sombra [3].
A ideia de finitude permeia a obra augustiana, mas não em um sentido de sentimentalização do fim da vida, como fez a escola romântica; a poesia de Augusto trata a finitude quase como uma revelação (apocalipsis), isto é, ele faz uma reflexão da existência, que partindo da matéria, comunica – ou revela – ao espírito humano que em determinado momento haverá a cisão entre ele e seu corpo, e que este mesmo corpo se decomporá. A decomposição e a podridão são os ângulos pelos quais o poeta faz sua reflexão sobre a realidade. “É uma leitura de mundo pela base, onde mais fede. Bate-se onde mais dói” [4]. Isso se nota por exemplo quando se lê no poema As cismas do destino:
Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!… És poeira, e embalde vibras! [5]
Ou ainda nos versos de Monólogo
de uma sombra:
Como um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
[6]
Não só isso, como também as
analogias que o poeta paraibano faz para demonstrar a ideia de podridão como
sendo meio de revelação sobre a realidade da finitude do ser humano. Ao
compará-la, por exemplo, com os óvulos infecundos que são expelidos na menstruação,
dando a entender que a vida se acaba aos moldes dessa reação corporal das
mulheres:
Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo [7].
A
revelação do fim, proposta na poesia augustiana, possui um caráter de ser
tomado de assalto; em outros termos, se trata da insurgência e
arrebatamento repentino da consciência do finito no próprio sujeito, como se
pode ler:
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora,
vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra
parede...”
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço.
Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este
morcego!
Por mais que a gente faça, à noite ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto! [8].
Esse morcego invasivo é figura da
revelação assaltante da finitude do humano. A consciência de ser finito é o
ponto de partida para toda reflexão humana. Entretanto isso não ocorre em um
primeiro momento, pois, antes do mais vem a consciência que se é, isto
é, o cogito de existência. Ao reconhecer-se como existente, a reflexão sobre o
fim chega à mente humana. Tal reflexão é o Último credo expresso pelo
poeta do trágico:
Como ama o homem adúltero o
adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro – este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!
É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma,
é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!
Creio, como o filósofo mais crente,
na generalidade descrente
Com que a substância cósmica evolui... [9]
A visão de mundo proposta na poesia
augustiana é unificada e unificante, pois, não considera o ser humano separado
– ou sublimado, melhor dizendo – ela trata o homem, antes de tudo como parte do
processo natural de nascer, crescer, reproduzir e morrer. Num primeiro momento
a antropologia de Augusto dos Anjos enxerga no humano os aspectos materiais,
seja seus elementos químicos ou suas reações biológicas, como também seus
instintos e apetites próprios do homo naturalis. A animalidade do homem
é posta como condição primordial de toda a sua relação com a realidade, desse
modo, ele sente o animalesco latente em seu ser:
O Homem, que, nesta terra
miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera [10].
Tal uma horda feroz de cães
famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos! [11].
No entanto, apesar de abordar o homem como
animal dentro da natureza, o poeta não deixa de tratá-lo de modo diferente,
pois ele sabe que existe um fator que separa a humanidade da animalidade
(naturalidade): a sua racionalidade.
Como Pascal fizera em seus Pensamentos[12]
colocando o ser humano como o meio termo do finito e infinito (Nada e Tudo), e
como aquele que pode conhecer – toma consciência – razoavelmente um pouco de
ambas as coisas; Augusto – imbrincado a esse pensamento pascalino, porém,
tratando-os como Contrastes[13]
– também põe na racionalidade seu aspecto de despertar, isto é, seu caráter
consciencioso, de modo especial, consciência de finitude; isso é o que se vê
nos versos de Os doentes [14]:
E esfregando as mãos magras, eu,
inquieto,
Sentia, na craniana caixa tosca,
A racionalidade dessa mosca,
A consciência terrível desse inseto!
O doente, o vencido, a sombra – todos são
sinônimos do sujeito que despertou para consciência de finitude graças a
“revelação” da mesma. Um sujeito de tal modo estupefato pela descoberta que se
vê numa condição de não compreensão do mundo em que vive. A fatídica
incapacidade de entender os mistérios que envolvem o mundo. Talvez, porém, os
mistérios possam parecer distantes, porém, essa incapacidade de compreensão se
detém também nos detalhes do cotidiano que passam despercebidos, mas que, a seu
modo, escancaram a quem os vê a sua pequenez e finitude. O véu de Isis é
removido, por exemplo, ao simples olhar para a lua cheia (plenilúnio):
Tal qual quem para o próprio túmulo
olha,
Amarguradamente se me antolha,
À luz do americano plenilúnio,
Na alma crepuscular de minha raça
Como uma vocação para a Desgraça
E um tropismo ancestral para o Infortúnio [15].
O
tropismo significa o movimento natural para o fim. Eis, então, o homem diante
da consciência de morte. Contempla-se a si mesmo na natureza, e sente como se
seu corpo tivesse saudade dos elementos que lhe compõe, “um velhíssimo instinto
atávico, a saudade inconsciente da monera” [16]. E eis o ser humano
perante os mais simples acontecimentos do dia a dia, todavia, anunciadores de
mistérios; porque não há nada tão simples que não seja misterioso, como é visto
em Mistérios de um fósforo [17].
O ser humano agoniza como um filósofo em busca de respostas que não se podem
obter; cabe-lhe, então, somente olhar para a questão e colocar-se de fronte a
ela.
Agonia
de um filósofo
O mistério envolve o ser humano. Apesar
da consciência de finitude, ele não consegue compreender tudo aquilo que se levanta
como questão: Qual sua origem? Qual seu fim? Porque essa realidade? Isso
significa que, atrelado à finitude, está o mistério das coisas.
O espanto perante as situações simples da
vida, das observações óbvias e das constatações da decadência do corpo e do
espírito, faz com que o homem se veja impotente diante do mundo. Como o Sísifo
de Albert Camus, o sujeito augustiano se vê jogado diante da absurdidade do
mundo e de sua incapacidade de compreender até mesmo as realidades que a seu
ver estão plenas de obviedade.
Diante dessa situação todo o conhecimento
que o ser humano tem, aparece como sendo mínimo, tênue e rasteiro. Por isso, o
poeta paraibano descreve-o como um agoniado diante daquilo que pode ser
conhecido e o que pode conhecer:
Consulto o Phtah-Hotep. Leio o
obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me
não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!
Assisto agora à morte de um
inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal do Anaximandro de Mileto!
No hierático areópago heterogêneo
Das idéias, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...
Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal![18]
A agonia do filósofo é figura da
inconsolação da filosofia, isto é, “o filósofo se dá conta da sua insuficiência
diante da incompreensão do mundo, e a ânsia pelo absoluto fracassa na limitação
do ser humano, como se o verdadeiro conhecimento fosse inalcançável ao homem”[19]. É dessa situação que
nasce a agonia. Contudo, para compreender melhor ao que o termo agonia se
refere neste texto, tome-se sua etimologia:
A palavra agonia vem
do grego ἀγών (agón - luta). Refere-se à angústia que uma pessoa sofre
quando está à beira da morte. Isto é, quando está lutando por sua vida. A
palavra grega ἀγών se relaciona com a raiz indo-europeia: ag-
(conduzir), presente no latim agere (levar a cabo) [20].
Considerando a origem do termo,
tem-se dois elementos pelos quais se deve entende-lo: luta e condução. Agonia,
portanto, é uma ação do sujeito diante do mundo e um agente no espírito humano.
Em outros termos, agonia é a luta do homem por compreender o mundo e a si mesmo,
que enquanto não encontra compreensão agoniza. Por outro lado, ela é um agente,
na qualidade daquela motivação que convida e conduz o agonizante à luta. Por
essa razão, a consciência da finitude, que é princípio de questionamentos
profundos na vida humana, é também princípio da agonia, pois aí se inicia a
luta pela busca de compreensão de si e do mundo circundante.
A agonia é uma tensão de vida-morte, pois
ela comporta esses dois elementos e sobre eles estimula o movimento relacional.
De tal modo, a morte – como consciência do fim – age como o estímulo para a
vida, enquanto se considera a agonia como agente. Enquanto ação, a agonia associa-se
à vida que luta para manter-se diante do mistério da existência finita. Este é,
portanto, o movimento relacional do binômio vida-morte.
Voltando
ao poema de Augusto dos Anjos, o filósofo lá descrito – imagem de uma
humanidade desamparada de respostas – percorre um caminho que se pode traçar
pelos verbos conjugados com a primeira pessoa do singular no presente do
indicativo: Consulto, leio, consolo, rolo, assisto, percorro, rasgo e
reconheço. A consulta e leitura dos antigos sábios, a não-consolação
encontrada, o ato de rolar no próprio inconsciente em busca das respostas, o
assistir os últimos instantes de vida de um inseto – e esse é o destarte para o
fim, a revelação da finitude – o percurso pelas ideias que entram no processo
do rasgo do véu espesso, até a culminância do reconhecimento da finitude, da
limitação, da morte. Esse é o itinerário proposto no poema. Tal caminho é causa
de desemparo. Vive-se, consciente ou inconscientemente, em agonia. Agonia
celular, sistêmica e mesmo espiritual. Morre-se, consciente ou
inconscientemente, agonizando aos poucos, agonizam células, fibras e partes do
espírito. Essa é uma leitura do filósofo que fala no poema.
Considerações
finais
“Mas sentir-se, como humanidade (e
não somente como indivíduo), tão esbanjado como vemos a florescência isolada
ser esbanjada pela natureza, é um sentimento acima de todos os sentimentos. –
Mas quem é capaz dele? Certamente apenas um poeta: e poetas sabem sempre
consolar-se” [21].
Essa é a maneira de Nietzsche se referir aos poetas: como aqueles que
sintetizam os sentimentos da humanidade e expressam-nos esteticamente
consolando-a.
Augusto dos Anjos – que longe de
parecer querer consolar – sintetiza o sentimento de finitude de cada ser
humano. A poética augustiana redescobre
em cada verso a máxima quaresmal do cristianismo: Lembra-te, homem, que és pó,
e ao pó te hás de voltar (cf. Gn 3,19). Sua obra é um monumento ao memento
mori. Por isso, quando a revelação – consciência – do fim é efetuada, o
passo seguinte é a aceitação desse mesmo estado, trata-se do “acostuma-te à
lama que te espera!” [22].
A partir da finitude posta à sua
frente, o ser humano inicia seu processo de agonia, isto é, de luta pela
compreensão de si e do mundo, enquanto é motivado pelo seu ser finito: eis a
síntese posta por Augusto no poema Agonia de um filósofo. O poeta
paraibano parte do particular para o geral, pois o sofrimento, a morte e, sobretudo,
a agonia, atesta a unidade de toda humanidade. Um é o agoniado, porque todos o
são.
* * *
[1] Idealismo.
in: ANJOS, Augusto dos. Eu. São Paulo, Hedra, 2012. p. 100.
[2] Monólogo de
uma sombra. Ibid. p. 63.
[3] CALIXTO, Fabiano.
Augusto dos Anjos ou apocalipsis litteris. Ibid. p. 20-21.
[4] Ibid. p. 24.
[5] As cismas do
destino. Ibid. p. 93.
[6] Monólogo de
uma sombra. Ibid. p. 64.
[7] Budismo
moderno. Ibid. p. 95.
[8] O morcego.
Ibid. p. 71.
[9] Último credo. Ibid.
p. 101.
[10] Versos íntimos.
Ibid. p. 153.
[11] As cismas do
destino. Ibid. p. 82.
[12] “Afinal, que é o
homem dentro da natureza? Nada em relação ao infinito; tudo em relação ao nada;
um ponto intermediário entre tudo e nada. […] é-lhe (igualmente) impossível ver
o nada de onde saiu e o infinito que o envolve”. PASCAL, Blaise. Pensamentos.
São Paulo, Abril Cultural, 1984. p. 52.
[13]
In: ANJOS,
Augusto dos. Eu. São Paulo, Hedra, 2012. p. 133.
[14] Ibid. p. 117.
[15] Monólogo de
uma sombra. Ibid. p. 64.
[16] Os doentes.
Ibid. p. 114.
[17] Ibid. p. 179-182.
[18] Agonia de um
filósofo. Ibid. p. 70.
[19] SOUZA, Gustavo
Ramos de. O poeta do hediondo – A agonia de Augusto dos Anjos. 2009 – Disponível
em: http://reproduction-inderdite.blogspot.com/2009/10/o-poeta-do-hediondo-agonia-de-augusto.html - acesso 28 jul
2021.
[20] Etimologia da palavra agonia: Disponível
em http://etimologias.dechile.net/?agoni.a
[21] NIETZSCHE,
Friedrich. Humano, demasiado humano. in: Friedrich Nietzsche: Obras
incompletas. São Paulo, Nova Cultural, 1999. p. 76. (Os Pensadores)
[22] Versos íntimos.
Ibid. p. 153.