Monges cartuxos, monastério na caverna - Fraçois Marius Granet
Bruno R. Sales
Introdução
Com frequência o ser humano procura
comunicar-se com o divino, com algo que o transcende. Ele canta, recita
orações, louva e eleva preces à divindade; ele diz algo aos deuses ou deus. A
atitude do Homo religiosus é de “dizer” ao divino. Mesmo o silêncio do
homem religioso é um modo de “dizer”, de se expressar. Pode-se afirmar, ainda
que de modo questionável, que o ser humano – imerso na religiosidade – jamais é
mudo, sempre fala, porque supõe que seu interlocutor está constantemente à sua
frente.
Entretanto, a questão se complica
quando tentamos enxergar o lado do interlocutor, isto é, ao tentar entender
como a comunicação acontece a partir da via divina da conversa. Para isso,
existem várias respostas, em função das várias expressões religiosas,
teologias, teosofias e matérias em religião afins. Sabe-se, porém, que há um
elemento comum que as diversas respostas consideram: o silêncio do divino.
No Ocidente, as religiões reveladas
são as que mais influenciaram com resoluções dadas ao problema do silêncio do
divino. E, acredito, que nestas a questão do misterioso silêncio é mais forte,
complexa e difícil, pois em suas tradições Deus se comunica, não somente isso,
a comunicação com o ser humano parte da própria divindade. Outro elemento a ser
considerado nesse contexto comunicativo, é a revelação do nome de Deus. Nas
três grandes religiões monoteístas – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo – Deus
revela seu nome e isso eleva ainda mais a comunicabilidade das esferas divina e
humana, pois, a divindade se torna apelável.
Esse
Deus nomeado e, portanto, apelável; é o mesmo que se tem como ser pessoal. Por
pessoal tem-se aqui aquilo que se refere a características de si mesmo [1] – Eu sou o que sou (Ex
3,14). Nesses termos, o Deus revelado do monoteísmo é considerado uma divindade
de relação constante, posto que, todos os termos (revelação, comunicação,
apelabilidade, pessoalidade) remetem a tal coisa.
O Deus monoteísta da revelação é um
ser de palavra, tanto escrita, quanto falada, pois assim testemunham as
religiões acima citadas. No Judaísmo e Islamismo, sua palavra é sagrada e no
Cristianismo ele mesmo é palavra (cf. Jo 1,1). Portanto, como pode uma
divindade sobre a qual pesam as características que negariam a possibilidade de
silêncio, manter-se silente? Para tanto, o presente texto se propõe ser uma
tênue reflexão sobre as perspectivas filosóficas e teológicas de resposta para
essa questão.
Silêncio
Não é tarefa fácil dissertar sobre o
silêncio, parece mesmo um paradoxo querer falar sobre o que é ausência de som.
Ele possui várias perspectivas de reflexão – entre as quais, acredito que a
mais destacada é a religiosa, devido a aplicação dele na mística – o que o
deixa ainda mais complexo, dificultando o intuito de dizer o que ele é.
Apesar dos contratempos das perspectivas,
nesse texto, será ponto de partida a sentença de Tomás de Aquino: “O silêncio
se opõe à fala” [2].
Esse é o fundamento do silêncio oposição à fala, portanto, trata-se de termos
de relação entre o falar-calar. Pode-se inferir que o silêncio é o elemento
intermediário entre o dito e o calado; de modo semelhante, ele é também
adequado ao não-dito. O silêncio, então, se configura em duas opções: o nunca
ter falado (não-dito) e o falar e calar (elemento intermediário dito-calado).
Considerando esses dois elementos acima,
tome-se agora o ambiente em que são aplicados: a comunicação. O silêncio é, de
fato, um dos fatores necessários à comunicação, ele mesmo, em certas ocasiões,
é comunicativo. Em sua comunicabilidade, ele é a pausa entre as palavras ou
ainda a condição sem a qual não seria possível compreender o que o locutor
fala, em outros termos, o ambiente silencioso permite a compreensão de forma
mais eficaz.
Entretanto, em outras situações, ele
também é sinal de uma não-comunicação. Trata-se do silêncio vazio, no qual não
existe comunicação, mas tão somente uma fria indiferença em relação a qualquer
tipo de investida comunicativa. Esse tipo de silêncio causa o efeito de um
ambiente hermético, no sentido de algo fechado e denso, uma barreira sem
possibilidade de travessia, criando, assim, uma situação permeada pelo
sentimento de encarceramento, constrangimento e distância.
Para além da comunicação oral, o silêncio
pode adequar-se também à escritura. De que modo? Ora, a palavra escrita
silencia quando perde seu sentido, torna-se língua morta. Como certa vez
expressou o romancista Graciliano Ramos: “a palavra foi feita para dizer” [3]. Então, quando a palavra
já não “diz” mais nada, quando perde qualquer sentido inerente e torna-se
apenas forma simbólica escrita sem conteúdo, ela é silenciada. Por isso, se
pode expressar que palavra-morta é sinônimo de silêncio da escrita.
Com
esses brevíssimos apontamentos sobre o silêncio, apliquemo-los ao conceito
religioso de comunicação divina, ou seja, o silêncio será aplicado a divindade,
para assim ser analisado o silêncio desta, de acordo com as respostas
filosóficas propostas a essa questão.
Deus:
Ocioso ou silente?
Em relação à divindade, o silêncio me
parece ser necessariamente após uma fala, pois é preciso que o deus se
manifeste de alguma forma para que se torne conhecido por seus devotos. Em
função disso, a ideia de um deus que nunca falou, sempre silencioso, é objeto
que carece de um sentido, pois não há coerência em um deus mudo, nunca
comunicante. Ao menos essa é a forma atestada na história da humanidade, posto
que, desde os tempos remotos, todas as tradições religiosas tem a pretensão de
comunicação com divino e deste com os homens – variando os graus dessa
comunicabilidade de uma tradição para outra. Considerando isso, o silêncio como
o não-dito não se adequa, razoavelmente, à divindade. Tomando, então, o
silêncio divino como sendo de uma divindade que fala e depois cala, tem-se dois
caminhos possíveis de resposta: deus ocioso ou deus silente.
Em seus estudos, Mircea Eliade define o
deus ocioso como sendo resultado de um afastamento do deus criador de sua
criação [4]. Segundo o filósofo,
algumas mitologias explicam que esse tipo de deidade, “depois de ter criado o
Cosmos, a vida e o homem, sente uma espécie de ‘fadiga’, como se o enorme
empreendimento da Criação lhe tivesse esgotado os recursos. Retira-se, pois,
para o Céu, deixando na Terra um filho ou um demiurgo, para acabar ou aperfeiçoar
a Criação” [5].
O deus ocioso é uma divindade indiferente.
Ele não se importa com destino de sua Criação, vive isolado dos homens ou de
qualquer outro ser; não possui sacerdotes nem culto [6]. Sua presença é totalmente
ignorada e a indiferença é a marca de sua relação com o mundo. Mas, a
legitimação desse conceito de deus não vem apenas das mitologias, o pensamento
epicurista dá bases racionalizadas, filosoficamente, para ele.
Para o epicurismo os
deuses não se importavam com a humanidade, aliás, se acaso se importassem não
seriam deuses. Epicuro “apresenta divindades que não tem inveja, que não
odeiam, que não alimentam desejo de vingança, que não são más, que não vigiam
as ações dos homens, que não acossam os viventes com a obsessão do destino, que
não os torturam com a ideia da morte, que não se intrometem no mundo” [7].
O conceito de divindade
para o filósofo de Samos é, portanto, o do ser beatíssimo que alcançou a
ataraxia e aponia, isto é, toda a ausência de dor e sofrimento. E
essa realidade seria abalada se por acaso os deuses se importassem com o
destino de outros que não fossem eles mesmos. Desse modo, no epicurismo, os
deuses “não sendo nem criadores, nem senhores, os deuses não são nada em
relação a nós, ou melhor, é sua relação conosco que não é nada” [8].
Epicuro sublimou ainda mais a ideia da distância da divindade em relação à
humanidade.
Contemporaneamente,
Albert Camus, influenciado pelas ideias de Epicuro – também de Lucrécio, outro
epicurista – alinhavou sutilmente a ideia do deus ocioso, indiferente,
notadamente na peça O mal-entendido (1944). Nessa obra, pode-se
interpretar como imagem do deus ocioso o velho criado, que nada fala, que ouve
mal e que não intervém em coisa alguma para mudar a tragédia retratada na
história – a da irmã e mãe que matam o irmão/filho por engano [9].
No II ato, uma das
personagens questiona sobre as atitudes do velho criado e seu trabalho: “Vocês
têm um criado estranho […] Não é uma censura. Não é como todo mundo. É mudo?” [10].
De fato, o velho possui uma única fala ao fim da peça, quando uma das personagens
principais eleva uma oração em seu desespero, ele questiona: “Você me chamou?” [11].
Quando ele obtém a resposta à sua pergunta – e a resposta é um pedido de ajuda
– rebate-a com um “não”, as cortinas se fecham, o espetáculo termina e o
silêncio domina o final da história.
O velho criado camusiano
é figura adequada para retratar a ideia do deus ocioso e apático, sem nome e
misterioso, que cuida simplesmente de sua própria existência e nela se compraz.
Aos moldes da teoria epicurista, Camus trouxe aos contemporâneos a imagem da
divindade distante, distância essa proposital, isto é, podendo comunicar-se, a
divindade não o quis.
Em caminho contrário ao
deus ocioso, tem-se o segundo: o deus silente. Nesse caso, a divindade falou,
mas calou; porém, continua exercendo sua influência e poder de maneira
discreta, no silêncio de seus atos. Nesse caminho destaca-se de maneira
particular a teologia cristã, pois, no decorrer sua história, ela sempre
procurou argumentar a favor do Deus silencioso em seu agir.
Em seu comentário ao Salmo 7 (En. Psl.
7,1), por exemplo, Agostinho de Hipona propõe que o silêncio divino seja
interpretado como “segredo”. Colocando a história do Cristo em silenciosa
atitude diante das traições e armadilhas para ele tramadas, o bispo de Hipona assevera
que ele “combateu contra aquelas fraudes em silêncio, isto é, em profundo
segredo” [12].
Isso sugere um silêncio comunicante. Nesse aspecto da teologia agostiniana, o
silêncio de Deus tanto demonstra a inescrutável profundeza divina – o segredo
de Deus mesmo – tanto o agir secreto, sem barulho da divindade diante das
realidades imanentes.
Tomando as palavras de Paulo aos Romanos (11,33.34),
Agostinho aplica o silêncio à contemplação mística da revelação de Deus aos
seus escolhidos, de modo que, “não tanto faz uma exposição daquele profundo
silêncio, antes o propõe à admiração” (En. Psl. 7,1) [13]. O silêncio de Deus
adquire, portanto, o status de comunicação num âmbito onde a fé, e a
experiência desta, é quem atesta a comunicabilidade, pois, pela fé Deus é
sempre comunicante.
Também no séc. XX, o teólogo suíço, Hans
Balthasar, retoma essa ideia agostiniana, mas ele acrescenta – após uma análise
da teologia de Inácio de Antioquia – que, “o ser que se cala sustenta a palavra
que ressoa, a justifica e lhe dá força para agir” [14]. Isso significa que, pelo
silêncio, a divindade faz ressoar na história sua palavra já dita em seu
primeiro contato com os homens.
Na teologia cristã, a comunicação divina
está estabelecida entre a relação palavra-silêncio, sendo estes aspectos de um
mesmo conteúdo e mensageiro. Jesus Cristo é a Palavra (Lógos) que
manifesta a fala de Deus, mas que também atesta seu silêncio tido como “segredo”
de sua essência e de seus atos. Para Balthasar, o tríptico mistério de Cristo –
encarnação, paixão e ressurreição – é a verdadeira forma da comunicação divina,
pois, Jesus é o mensageiro e a mensagem, o silêncio de Deus rompido na história
e, ao mesmo tempo, permanecido silencioso em seu Ser-em-si-mesmo e em seus
atos. Desse modo, “a Palavra de Deus brotou historicamente da silenciosa
ocultação de Deus […]. E o conteúdo desta realidade mantida em silêncio e agora
revelada, não é, nem só a palavra positiva da Escritura ou de Jesus no
Evangelho […] mas, a incalculável riqueza de Cristo […] que se encontra na
realização do mistério oculto desde a eternidade em Deus” [15].
No Cristianismo, o Deus revelado por/em
Jesus Cristo é um comunicador silencioso. Ele é o Deus silente que atua
discretamente, sem ser notado, a menos que ele mesmo queria ser notado. Nesse
caso, o silêncio divino, testemunha e elemento de comunicação, é reconhecido
primordialmente pela fé. Como já expresso acima, pela fé Deus é sempre
comunicante.
Contudo, o ponto fraco do Deus silente
reside no fato que ele pode ser considerado omisso. Enquanto pelos fieis ele é
reconhecido como agente silencioso/oculto, para os que não possuem essa
assertiva da fé, ele é um Deus omisso. Isso acontece principalmente quando se
coloca o silêncio divino diante questão do mal e do sofrimento humano. Nesse
contexto, o argumento é que seu silêncio é omissão diante da realidade
imanente. Não chega a tornar-se um Deus ocioso totalmente indiferente, ele
apenas não usa de seu poder para intervir em determinadas situações vitais de
sua própria criação – assim é o argumento. Tal argumento se sustém nos
atributos divinos: onipotência, onisciência e onipresença. O Deus que tudo
pode, que tudo sabe e que está em todo lugar, não rompe seu silêncio perante a
maldade e os absurdos da existência terrena, o que implica em deliberada
omissão. A questão é bem mais complexa que isso, mas de modo geral seu
funcionamento é dessa maneira.
Considerações
finais
Por fim, em nossos dias – atribulados por
uma pandemia que matou milhões no mundo inteiro e causou sofrimentos tremendos
–; mutatis mutandis, como nos dias das Grandes Guerras do século
passado; questiona-se: “onde está Deus?”. Considerando as duas
respostas, dadas ao silêncio da divindade, tem-se então duas inferências ao
atual silêncio divino: o Deus silente, que pode ser tido como omisso ou agente
discretíssimo; e o deus ocioso indiferente ao que ocorre com os mortais.
Esses caminhos – ociosidade e mudez – são
duas respostas encontradas para trazer tênue luz sobre a problemática do
misterioso silêncio da divindade. Digo “tênue” porque tal problema não deixará
de fato de ser como é. A solução residirá na forma particular como cada sujeito
adota para si; dito de outro modo, assim como a questão da existência de Deus,
seu silêncio ou fala requer a escolha pessoal de cada um de acordo com suas
crenças e experiências religiosas. Dessa questão não se pode esperar pela
batida de um martelo da certeza.
[1] Pode-se entender
isso melhor na Suma Teológica I, q. 29. a. 3.
[2] AQUINO, Tomás de.
Suma Teológica. v. III, parte I-I. São Paulo: Edições Loyola, 2003. [q.
48. a. 4.]
[3] RAMOS,
Graciliano. Conversas. org: Thiago Mio Salla, Ieda Lebensztayn. Rio de
Janeiro, Record, 2014. p. 77.
[4] cf. ELIADE,
Mircea. Mito e realidade. São Paulo, Editora Perspectiva, 1986. p. 86s.
[5] ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano:
a essência das religiões. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2013. p. 103.
[6] cf. ELIADE,
Mircea. Mito e realidade. São Paulo, Editora Perspectiva, 1986. p. 86s.
[7] ULLMANN, R. A. A teologia de Epicuro. In:
ULLMANN, R. A. Epicuro: o filósofo
da alegria. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2010. P. 76.
[8] DUVERNOY, J. F. Deus é deus. in:
DUVERNOY, J. F. O epicurismo e sua
tradição antiga. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993. p. 62.
[9] cf. CAMUS,
Albert. Le malentendu. in: CAMUS, Albert. Théâtre, récits, nouvelles.
Paris, Gallimard, 1962. (Bibliotèque de la pléiade) p. 180
[10] Ibidem. p. 129
[11] Ibidem. p. 180.
[12] HIPONA, Agostinho
de. Comentário aos Salmos I. São Paulo, Paulus, 2014. – disponível em: https://kupdf.net/download/santo-agostinho-coment-aacute-rio-aos-salmos-1-ao-50-cole-ccedil-atilde-o-patr-iacute-stica-paulus-editora-pdf_58fecdd7dc0d609c24959e86_pdf - acesso 23 out
2021.
[13] Ibidem.
[14] BALTHASAR, H. U.
Palabra y silencio. in: BALTHASAR, H. U. Ensayos teológicos I: Verbum
caro. Madrid, Cristandad, 1962. disponível em: https://pt.scribd.com/doc/250928775/Balthasar-Revelac-a-o-e-Beleza-Palavra-e-Sile-ncio-Verbum-Caro - acesso em 23
out 2021.
[15] Ibidem.