terça-feira, 1 de novembro de 2022

CONHECIMENTO, TEMPO E SER

 

Bruno R. Sales

      Πάντες ἄνθρωποι τοῠ εἰδέναι ὀρέγονται φύσει [1] – Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Essa sentença, legada por Aristóteles à posteridade, demonstra a síntese do que é ser humano, a saber: um ser cuja ambição básica é conhecer. Mas, o que desejamos conhecer? Tudo o que estiver ao nosso alcance, desde a fofoca na rua até os mistérios que se escondem na imensidão do universo. E mesmo assim somos insatisfeitos e constantemente tentamos ir além de nossos limites, testando até onde nossa racionalidade pode apetecer tal anseio.

          Esse desejo natural por conhecimento, que poderíamos sem problemas traduzir de modo popular por curiosidade, é objeto de discussão a tempos, desde antes de o próprio Aristóteles escrever a frase acima citada. As ideias que foram se acumulando de lá para cá possuem, em certa medida, elementos comuns. Por exemplo, a ideia dos múltiplos meios de conhecer, sensível e suprassensível; ou ainda, a consciência de saber que sabe e que pode saber das coisas. Trago apenas essas duas definições para exemplificar de modo bastante grosseiro. Contudo, no presente texto, quero considerar o desejo por conhecimento em sua relação com o tempo.

           Por conhecimento tenho em mente a sua significação mais generalizada: saber das coisas e sobre as coisas. Já o tempo, aqui, será tratado como uma categoria que permite ao homem reconhecer o Ser ou Não-ser das coisas. Isso significa que, quando se considera o tempo, simultaneamente tem-se em mente o Ser e o Não-ser. Isso significa que a temporalidade exige a mínima ideia de existência ou de possibilidade dela. Essa noção de existência é dupla, pois deve considera-la como existência de si e, de igual modo, da coisa que se conhece ou quer conhecer. [Mesmo que esta última esteja se referindo a algo que não existe na realidade, mas apenas na imaginação, portanto, uma existência inteiramente dependente da consciência do sujeito].

O tempo, de acordo com Kant, é uma intuição a priori da razão, isto é, ele independe da experiência sensível para que se saiba a seu respeito e de sua afetação sobre o sujeito em sua capacidade de conhecer. Desse modo, “o tempo é uma condição a priori de todo fenômeno em geral, e na verdade a condição imediata dos fenômenos internos (das nossas almas) e por isso mesmo também mediatamente a dos fenômenos externos” [2]. Nesses termos, o tempo não é uma realidade ontológica, ou seja, não subsiste por si mesmo, mas é uma intuição da mente humana sem a qual o conhecer não seria possível, posto que, tudo que se pode conhecer deve ter alguma relação com ele.

Mas, se dissermos que o conhecimento depende do tempo, como é possível qualquer conhecimento sobre algum ser que o transcenda? Em sua profundidade, essa discussão considera o tempo, mas tão somente como uma via negativa, isto é, o tempo como não-tempo. Em outros termos, o ser transcendente da realidade espaço-temporal, é um ser dito eterno; a eternidade é concebida como um presente perpetuo, sem devir. Desse modo, o tempo é tempo enquanto presente, entretanto, também pode ser considerado como não-tempo, quando é observado como devir ou sucessão de períodos. Com isso tem-se outra situação a levar em conta, em relação ao Ser e tempo o conhecimento se dá, em sua generalidade, de duas formas: uma sobre o Ser fora do tempo, isto é, o ser transcendente; e outra do ser temporal, ou seja, a existência vista como devir do ser (o ente). Em virtude da proposta do texto, ater-me-ei somente a este último.

O tempo-devir é aquele com o qual estamos mais acostumados, se assim se pode dizer, pois ele, psicologicamente [3], nos afeta com sua tripartição: passado, presente e futuro. E nosso conhecimento também é afetado. Mas antes de falar disso, é preciso retomar as relações entre Ser e tempo. Assim, a tripartição também tem sua maneira própria de relacionar-se com o ser. Basicamente, segue-se assim:

Não-ser → passado = recordação = ação retroativa [recordatio]
Ser → presente = ato = ação atual [actio]
Ser ou Não-ser possível → futuro = representação [representatio] = ação  – imaginativa
                                                                                                                        – dedutiva
                                                                                                                        – indutiva 

            Ora, o passado está para o Não-ser em função de sua não-existência. Contudo, ele também está como uma recordação [recordatio], ou seja, uma ação retroativa de conhecimento, pois trata-se de uma anamnese, certa rememoração de um conhecimento já tido, porém, esquecido. O presente está para o Ser em função da sua existência como ato, isto é, ação atual [actio]; isso tão somente significa que no presente o conhecimento é visto a partir do ser existente naquele momento. O futuro é sempre incerto e, em função disso, sua relação com Ser e Não-ser não possui definição categórica, mas apenas na forma de probabilidades. Isso significa que as possibilidades do futuro são representações [representatio] de possíveis ações. Essa capacidade de representar o futuro acontece por meio de três capacidades da razão: imaginação, dedução e indução.

           A dedução e a indução são processos já conhecidos. Ambos são frutos da racionalidade crítica e avaliativa. Nesses dois processos a razão avalia o passado e o presente e expõe, ainda que de modo tênue, as possibilidades do futuro. Elas, então, são processos que garantem um conhecimento hipotético, porém, com certo grau de segurança, pois está assentado na criticidade racional; a incerteza permanece presente, mas a certeza também adquire sua porcentagem nessa situação.

Entretanto, a imaginação, em relação ao futuro, é a mais enganosa, pois ela põe em jogo ideias baseadas em simples acaso e suposições, sem nenhum critério de julgamento. Em termos simples, a imaginação gira em torno da possibilidade das possibilidades, portanto, trata-se de mera expectativa diante das coisas que se quer saber [talvez aqui, o saber deve ser tido como experiência; isso evidencia que o conhecimento, no que diz respeito ao futuro, é também baseado na esperança de uma experiência de apreensão, não da apreensão em si].

           Ser e tempo são basilares para o conhecimento, acredito que isso seja evidente. Nada daquilo que soubemos, sabemos e saberemos está independente dessas relações. O humano como ser existente temporariamente nessa terra, apreende as coisas de acordo com que lhe é permitido ser. Em resumo, para findar esse texto, somos seres e temporais, portanto, tudo o que conhecemos depende do ser e do tempo.        


[1] Metafísica, Lib. I, 980a - ARISTÓTELES. Metafísica vol II. Ensaio introdutório, tradução do texto grego, sumário e comentários de Giovanni Reale. São Paulo. Edições Loyola. 2002. p. 3.

[2] KANT, Immanuel. Crítica da Razão pura. São Paulo, Nova cultural, 1999. (Os pensadores); p. 79.

[3] Digo psicologicamente em concordância com Agostinho de Hipona que via no tempo uma distensão da mente em relação a um antes e depois [cf. Confissões, Lib. XI, 23ss.]

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