Bruno R. Sales
Os
motivos pelos quais o nascimento da filosofia deu-se na Grécia é objeto de
discussão há tempos, pois, muitas outras civilizações estavam avançadas para
seu contexto temporal, como o Egito e a Babilônia, por exemplo. Alguns
consideram que as razões desse surgimento na Grécia foram a abertura e
capacidade sintética do pensamento grego de então, de modo especial, dos
pensadores jônicos. A Jônia era, até então, uma capital com grande fluxo
comercial e intelectual que possuía fluidez em sua constituição cultural, isto
é, diferentemente do Egito e Babilônia onde não se questionavam as tradições e
mitos [não no sentido de revolta, mas busca curiosa pelas origens sensíveis
delas], os pensadores da escola jônica, considerados como primeiros filósofos –
Tales, Anaximandro e Anaxímenes – tiveram liberdade e ousadia para questionar
sobre as respostas que os poetas haviam dado às perguntas da época, e propor
eles mesmos outras que em seu cerne procuravam fugir das fantásticas narrativas
míticas e fundava-se numa razão argumentativa firmada naquilo que todos podiam
averiguar com seus sentidos.
Existem duas vertentes que procuram
explicar a passagem do mito ao lógos: aquela que comumente tem-se como “milagre
grego” e a hipótese do desenvolvimento a partir da religião. A respeito da
ideia do milagre grego traduz-se na hipótese de que a filosofia surgiu como um
fato original da Grécia, de modo que, nenhum outro povo teve essa originalidade
de pensamento e método de pesquisa ou, até mesmo, vivência. Tem-se como
principal representante dessa hipótese a obra de John Burnet, A aurora da
Filosofia grega (1892), na qual o autor apresenta a filosofia como ciência,
no sentido de racionalidade sem recorrência à fantasia como justificação,
abalizada pelo empirismo ou racionalismo, ainda, argumentando que não seria
possível defender uma origem extra-grega à filosofia, de igual modo, não
haveria como afirmar que esta origem venha dos mitos, mesmo que sejam gregos.
Assim, segundo Burnet, “os gregos não tomaram sua filosofia nem sua ciência
emprestadas do Oriente” (§ XII) [1] e complementa afirmando
que
Houvera
uma ruptura completa com a antiga religião egéia e que o politeísmo olímpico
nunca teve uma influência sólida sobre a mente dos jônios. É, pois, um grande
equívoco buscar as origens da ciência jônica em qualquer tipo de ideia
mitológica (§ IX) [2].
Isso significa que, se se está de
acordo com Burnet, os gregos foram totalmente originais em sua forma de pensar,
mas, essa originalidade não está atrelada a nenhum aspecto anterior – mito ou
intercâmbio de culturas – mas se fundamenta numa exclusividade absoluta da
Grécia que proporcionou um ambiente adequado para que tal ocorresse.
Em
contraponto a essa visão da origem da filosofia, tem-se a hipótese de que ela
foi derivando da religião, isto é, havia num primeiro momento uma grande
proximidade – estrutural, temática, estilística etc. – entre o mito e filosofia
que aos poucos foi se perdendo, permitindo que o pensamento filosófico tornasse
independente, criando formas e metodologias tão próprias que o caráter
religioso, quando não sumia totalmente, era eclipsado pela argumentação
puramente racionalizada. A obra Principium
Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego (1952) de F. M.
Cornford, representa a síntese originária dessa hipótese.
Para
Cornford, as relações entre as crenças religiosas e o pensamento filosófico
nascente são evidentes e negá-las é restringir o campo de estudo da filosofia
antiga, diminuindo a riqueza e a complexidade do pensamento dos filósofos desse
período. Segundo ele, o estudo da origem da filosofia tida como rejeição ao
mito e as crenças religiosas fazem parte de um método afetado pelo positivismo
do séc. XIX e dos conflitos entre fé e razão que alardearam essa época da
história. Conforme ele escreve:
O
homem sábio, quer lhe deem o título mais antigo de sophiste, ou o mais
modesto de amigo da sabedoria, ainda era visto nos séculos V e IV como um dos
tipos diferenciados que tinham emergido do complexo profeta-poeta-sábio [ou
seja, do ambiente religioso]. As suas afinidades têm sido menosprezadas pelos
historiadores modernos da filosofia, obcecados pelo conflito entre religião e
ciência do século XIX. Têm partido do princípio de que o racionalismo
esclarecido está necessariamente em oposição às crenças e práticas
supersticiosas de uma religião hoje obsoleta, ou de que um filósofo cujas
preocupações religiosas não podem ser negadas tinha forçosamente de ter a sua
religião e a sua ciência em compartimentos tão estanques que elas nunca se
misturassem nem entrassem em conflito [3].
Além de sua crítica tenaz a Burnet e
cia, o autor estabelece para as gerações de estudiosos que lhe sucedeu o liame
entre a religiosidade grega e a origem da filosofia, permitindo que se
percebesse o nascimento da filosofia, não como um milagroso esclarecimento no
qual a razão filosófica aparenta ter surgido ex nihilo, mas como um
processo que durou séculos – de modo rasteiro do século VII a. C. ao III a. C.
–, a saber, a gradual racionalização dos mitos gregos. Esse movimento passou
por etapas nas quais a filosofia foi ganhando espaço, tornando-se robusta até
que, por fim, o mito fosse esvaziado e o saber filosófico se estabelecesse em
definitivo.
Da razão mitológica à razão filosófica
Concordando
que a filosofia não surgiu milagrosamente na Grécia, mas que se trata do
resultado de um processo lento e contínuo de racionalização de alguns aspectos
religiosos, que foi impulsionado por um ambiente onde grandes transformações
políticas e sociais permitiram a liberdade de pensamento, modificando também a
forma de transmissão de tal; tem-se apenas duas questões que precisam de
respostas: quais semelhanças tem a filosofia com a mitologia? E qual sua
novidade?
No
que se refere às semelhanças, Cornford oferece o esquema que as salienta, de
modo que, muito mais que duas visões de mundo distintas, razão mitológica e
razão filosófica se configurem em dois níveis distintos de abstração da
realidade. Assim, segundo Cornford, ambas possuem:
1 – No princípio
uma unidade original, um estado indistinto ou de fusão, no qual os fatores que
mais tarde se irão diferenciar estão ainda amalgamados;
2 – Desta unidade
surgem, por separação, pares de coisas ou ‘forças’ opostas; o primeiro
constituí pelo Quente e pelo Frio, seguindo-lhe o úmido e o Seco. Esta
separação leva finalmente à disposição das grandes massas elementares que
constituem a ordem do mundo, e à formação dos corpos celestes.
3 –
Os opostos atuam uns sobre os outros ou formam novas combinações nos fenômenos
meteóricos e na produção de coisas vivas individuais – as plantas e aos animais
[4].
Nota-se,
a partir disso, que as similitudes são especialmente de ordem estrutural. Os primeiros filósofos fizeram uso de estruturas pertencentes ao gênero
mitológico para expor suas ideias inovadoras. Isso fica ainda mais evidente
quando se observa que grande parte dos pré-socráticos escreveram em forma de
poemas cosmogônicos e de caráter quase religioso – a exemplo do poema do Ser de
Parmênides ou do Lógos de Heráclito. Entretanto, as semelhanças não se limitam
aqui, também a terminologia permanece. Os filósofos continuam falando sobre Κάος, Γαῖ, Οὐρανός e Ἒρος; porém, estes
termos não possuem o mesmo valor de significado.
Os
termos e a estrutura permanecem porque ambos tratavam das fórmulas vigentes da
época. É difícil imaginar, por exemplo, que algum filósofo atual decida
escrever suas obras em forma de poemas e com termos os quais os interlocutores
não tenham certa familiaridade ou nem ao menos possam compreender. Assim,
aconteceu com os pré-socráticos, eles escreveram usando uma terminologia e uma
estruturação que se assemelhava aos mitos, porém, não estava falando de deuses
ou heróis, essas personagens foram despojadas do antropomorfismo e do
ritualismo de então, para tornarem-se forças cósmicas responsáveis pela geração
e corrupção dos seres.
De
acordo com Vernant, “a inovação mental consiste no fato de essas forças serem
estritamente delimitadas e abstratamente concebidas: limitam-se a produzir um
efeito físico determinado, e este efeito é uma qualidade geral abstrata” [5]. O mesmo autor ainda
explica essa transformação alegando que os mitos eram narrativas, portanto, sua
função consistia em responder, através de histórias, as realidades das coisas
existentes (τά ὂντα); a filosofia inova quando, ao invés de partir de
uma narrativa, formula um problema para tentar resolvê-lo. Para os primeiros
filósofos, o mito tinha uma resolução, porém, não havia planteado o problema de
modo adequado. Werner Jaeger complementa, afirmando que essa atitude é “uma
forma nova e radical de pensar racional, que já não tira seu conteúdo da
tradição mítica, nem a rigor de nenhuma tradição, mas que toma por ponto de
partida as realidades dadas na experiência humana, ‘as coisas existentes’ [6]. Assim, o Lógos (λόγος)
do mito, concebido como palavra apresentada em forma narrada, cede seu lugar
para o Lógos filosófico que é apresentado na forma de uma lógica argumentativa
nascente.
[1] BURNET, Jonh. A
aurora da filosofia grega. Rio de Janeiro, Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006.
p. 35.
[2] Op. Cit. p. 29.
[3] CORNFORD, F. M. Principium
Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. Lisboa, Calouste
Gulbenkian, 1989. p. 174.
[4] Op. Cit. p.
308-309.
[5] VERNANT, J. P. Mito
e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. p. 449.
[6] WERNER, Jaeger. La
teologia de los primeiros filósofos griegos. México, Fondo de Cultura
Económica, 1992. p. 24.