terça-feira, 19 de março de 2024

OS CÉUS DE DANTE ALIGHIERI

 


Bruno R. Sales

            Entre 1204 e 1207, Dante Alighieri escrevia Convívio. A obra faz parte das denominadas “obras menores dantescas”, porém, a profundidade e elegância com que os assuntos dispostos pelo poeta italiano são tratados deixam claro que a titulação de menor está relacionada meramente à sua extensão – composta de apenas de 4 tratados, sendo incompleta – e sua maturidade quanto à escrita – posto se tratar de uma obra de transição da juventude para a maturidade literária de Dante.

            O convívio, ou o banquete, tem um objetivo que é novo na época em que foi escrito; ele pretendia chegar as camadas menos letradas, de forma que o Alighieri decidiu por escrevê-lo em vulgar (o dialeto popular italiano medieval) ao invés de utilizar o latim. Sua intenção era “oferecer um banquete de sabedoria, oferecido sobretudo aos pobres, aos marginalizados da cultura das letras, ao povo simples que, na Idade Média, mal sabia ler ou que gostava de acompanhar leituras interessantes feitas por outros em dias festivos ou mesmo à noite” [1].

            Nessa obra são expostos diversos assuntos, desde a sede natural humana por conhecer, até os capítulos que versam sobre o amor e seus efeitos, passando por comentários acerca da imortalidade da alma, a nobreza e a felicidade dos homens. Dentre esses conteúdos, Dante expõem sobre os céus e as inteligências que os governa, interpretando-os de modo poético. Tal interpretação, mais tarde, serviria de referência para o ordenamento cosmológico que daria em sua Comédia.

            Assim, o poeta parte da teoria ptolomaica da organização do universo, a qual estava em vigor na Idade Média, de forma que assim sintetiza:

E esta é a ordem das posições [dos céus]: o primeiro céu a ser contado é onde está a Lua; o segundo é onde está Mercúrio; o terceiro é onde está Vênus; o quarto é onde está o Sol; o quinto é o de Marte, o sexto é o de Júpiter; o sétimo é o de Saturno; o oitavo é o das Estrelas; o nono é o que não é perceptível senão pelo movimento antes mencionado, chamado por muitos de Cristalino, isto é, diáfano, ou mesmo todo transparente (Convívio, Trat. II; 3,7) [2].

            Dante coloca estes como céus móveis, de acordo com a própria teoria de Ptolomeu, ou seja, estes espaços celestes possuíam, cada um, movimento próprio e, por assim dizer, uma natureza própria. Cada céu é regido por um astro ou astros, de forma que eles são os responsáveis pelas influências de certos acontecimentos e eventos aqui na terra sejam de caráter físico ou espiritual. Entretanto, sabendo-se que esta obra se insere no medievo, estaria incompleta a teoria se não considerasse o elemento cristão que a ela se mesclou. De tal modo, se é acrescentado um décimo céu: o empíreo.

Na verdade, os católicos supõem o céu Empíreo fora de todos esses, o que é equivalente a um céu de chamas ou mesmo luminoso; e o supõem imóvel por ele conter em si, de acordo com cada uma das suas partes, aquilo que a sua matéria requer [...] Quieto e pacífico é o lugar da suma Divindade, a única a ver a si mesma por completo (Convívio, Trat. II; 3,8.10) [3].

            Este céu Empíreo estava vinculado ao motor imóvel aristotélico que foi interpretado por Tomás de Aquino como sendo Deus mesmo. Para a maioria dos pensadores desse período, Deus – motor imóvel – era a causa do movimento de rotação dos outros nove céus. Dante também concorda com isso. Contudo, sua exposição não se limita aqui, o poeta procura entender quem governa cada um desses céus, isto é, que força os governa e os mantém em movimento. Para Dante, resumindo as ideias de sua época, “os motores desses céus são substâncias separadas da matéria, isto é, Inteligências, as quais a gente comum chama de Anjos” (Convívio, Trat. II; 4,2) [4]. Com o intuito de demonstrar a qual Inteligência competia tal céu, o poeta faz uso da divisão hierárquica dos anjos feita por Gregório Magno.

Os espíritos angélicos [...] se distinguem em certas dignidades – como Tronos, Dominações, Principados, Potestades (Moralia, Lib. VI; 7,12) [5].

São nove os coros dos anjos. Pelo testemunho das Escrituras sabemos que há: anjos, arcanjos, virtudes, potestades, principados, dominações, tronos, querubins e serafins (Homilias sobre os Evangelhos, Hom. XXXIV, 7) [6].

            Partindo dessa descrição Dante escreve:

A Igreja as divide [as Inteligência] em três hierarquias, ou mesmo três principados santos ou divinos, sendo que cada hierarquia possui três ordens, de forma que ela mantém e afirma a existência de nove ordens de criaturas espirituais. A primeira é a dos Anjos, a segunda dos Arcanjos e a terceira dos Tronos; essas três ordens formam a primeira hierarquia, não em relação à nobreza nem à criação (pois as outras são mais nobres e todas foram criadas juntas), mas primeira em relação à nossa subida em sua direção. Em seguida estão as Dominações, depois as Virtudes, e em seguida os Principados, que formam a segunda hierarquia. Acima deles estão as Potestades e os Querubins, e acima de todos estão os Serafins, formando a terceira hierarquia (Convívio, Trat. II; 5,6) [7].

            Para além disso, o poeta florentino ainda relaciona os céus à ciências de sua época. Ele elenca três motivos para isso: primeiro, porque as ciências se movem em torno de seu respectivo objeto de estudo, assim como os céus se movem em si mesmos. Segundo, as ciências iluminam o intelecto, do mesmo modo que os céus iluminam, direta ou indiretamente, a face terrestre. Terceiro, e último, porque as ciências produzem no espírito humano a perfeição para qual ele tende, assim como os céus fazem com a alma, fazendo-a tender à virtude que está sempre mais alta (cf. Convívio, Trat. II; 13, 3-5). Considerando isso, as associações entre céus e ciências se apresentam da seguinte forma:

Os sete primeiros céus, do nosso ponto de vista, são os dos planetas; em seguida, depois deles, existem dois céus, todos móveis; e mais um acima de todos, quieto. Aos sete primeiros correspondem as sete ciências do trivium e do quadrivium, isto é, Gramática, Dialética, Retórica, Aritmética, Música, Geometria e Astrologia. À oitava esfera, isto é, a estrelada, correspondem a ciência natural, chamada Física, e a primeira ciência, chamada Metafísica; à nona esfera corresponde a ciência moral; e ao céu quieto corresponde a ciência divina, que é a Teologia (Convívio, Trat. II; 13,7-8)  [8].

            Tendo visto como o Alighieri tratou os céus no Convívio, convém, de igual modo, notar que eles participam da proposta que o autor colocou em todo o conteúdo da obra. Para ele, seu texto lida com os sentidos da escrita, a saber: literal, alegórico, anagógico e moral. Essa classificação dos sentidos da escrita era um chavão para os teólogos e filósofos medievais, de modo que, Dante os seguiu, porém, aplicando-os a sua própria escrita – comentando suas próprias canções – e às suas concepções filosóficas, como se poderá ver ao aplicar à temática dos céus. Para melhor compreender isso, veja-se o que próprio florentino coloca ao definir esses sentidos:

Um se chama literal... O outro se chama alegórico, e esse é o que] se esconde sob o manto dessas fábulas, sendo uma verdade velada sob uma bela mentira. [...] O terceiro sentido se chama moral, e esse é o que os comentadores devem observar atentamente nas Escrituras, para o próprio proveito e para proveito dos seus descendentes. [...] O quarto sentido se chama anagógico, isto é, um sobressentido, e esse é o que se dá quando se expõe espiritualmente uma Escritura, a qual, ainda que seja verdadeira também no sentido literal, remete à eterna glória pelas coisas que significa. (Convívio, Trat. II; 1,2-7)

            Aplicando cada sentido aos céus que Dante expôs, tem-se o seguinte: o sentido literal fica encarregado de demonstrar os céus como são em sua realidade – na época do poeta o sistema ptolomaico –; a alegoria aparece quando o poeta relaciona estes mesmos céus com as ciências de então; conquanto o sentido anagógico surge no momento no qual começa-se a pensar sobre as Inteligências que os governam. À vista disso, constrói-se a seguinte tabela:

 

 

SENTIDOS DA ESCRITA

 

Literal

Alegórico

Anagógico

 

 

 

C

É

U

S

I

Lua

Gramática

Anjos

I hierarquia

Inteligências que governam o movimento dos céus móveis

II

Mercúrio

Dialética

Arcanjos

III

Vênus

Retórica

Tronos

IV

Sol

Aritmética

Dominações

II hierarquia

V

Marte

Música

Virtudes

VI

Júpiter

Geometria

Principados

VII

Saturno

Astrologia

Potestades

III hierarquia

VIII

Estrelas fixas

Física e Metafísica

Querubins

IX

Cristalino (1° móvel)

Ciência moral

Serafins

X

Empíreo

Teologia

Deus

Poder supremo

Motor imóvel

O sentido moral não aprece na tabela porque seu domínio será demonstrado somente quando o sujeito, ao ler, adquira máximas e preceitos morais a partir de sua interpretação. Desse modo, o sentido moral já não cabe apenas ao autor, como foi com os outros, mas de forma especial ao interlocutor com quem ele fala e no qual deseja incentivar comportamentos nobres.

Dante era um homem de olhar para cima. Seus pensamentos e objetivos eram altivos, e tudo em sua obra denuncia isso. Além disso, elas aludem para a vida do ser humano que busca, sempre que pode, erguer-se até os céus, basta ver a Comédia que inicia nos mais profundos dos fossos e termina no mais alto dos céus; ou ainda Vida Nova e Convívio que atestam que o amor e a razão são as asas pelas quais o poeta alça voos até o sublime com seu dolce stil nuovo. Boccaccio, em sua biografia sobre o Alighieri, escreve que: “Ele tinha o costume de se retirar para algum lugar solitário sempre que a turba vulgar o incomodava, e ali refletir sobre qual espírito move o céu” [9].



[1] ZAMPOGNARO, Carlos E. Dante Alighieri: o poeta filósofo. São Paulo, Lafonte, 2011. p. 82

[2] ALIGHIERI, Dante. Convívio. São Paulo, Penguin-Companhia das letras, 2019. p. 146.

[3] Op. Cit. p. 147.

[4] Op. Cit. p. 149

[5] GREGÓRIO, Magno. Libros Morales 1: I-V. Madrid, Ciudad Nueva, 1998. p. 250.

[6] GREGÓRIO, Magno. Antologia. Disponível em: https://doceru.com/doc/xv0sssx - acesso em 18 mar. 2024.

[7] ALIGHIERI, Dante. Convívio. São Paulo, Penguin-Companhia das letras, 2019. p. 152-153.

[8] Op. Cit. p. 172-173.

[9] BOCCACCIO, Giovanni. Vida de Dante. São Paulo, Penguin-Companhia das letras, 2021. Ebook.

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