Bruno R. Sales
Entre 1204 e 1207, Dante Alighieri escrevia Convívio. A obra faz parte das denominadas “obras menores dantescas”, porém, a profundidade e elegância com que os assuntos dispostos pelo poeta italiano são tratados deixam claro que a titulação de menor está relacionada meramente à sua extensão – composta de apenas de 4 tratados, sendo incompleta – e sua maturidade quanto à escrita – posto se tratar de uma obra de transição da juventude para a maturidade literária de Dante.
O convívio, ou o banquete, tem um
objetivo que é novo na época em que foi escrito; ele pretendia chegar as
camadas menos letradas, de forma que o Alighieri decidiu por escrevê-lo em
vulgar (o dialeto popular italiano medieval) ao invés de utilizar o latim. Sua
intenção era “oferecer um banquete de sabedoria, oferecido sobretudo aos
pobres, aos marginalizados da cultura das letras, ao povo simples que, na Idade
Média, mal sabia ler ou que gostava de acompanhar leituras interessantes feitas
por outros em dias festivos ou mesmo à noite” [1].
Nessa obra são expostos diversos
assuntos, desde a sede natural humana por conhecer, até os capítulos que versam
sobre o amor e seus efeitos, passando por comentários acerca da imortalidade da
alma, a nobreza e a felicidade dos homens. Dentre esses conteúdos, Dante expõem
sobre os céus e as inteligências que os governa, interpretando-os de modo
poético. Tal interpretação, mais tarde, serviria de referência para o
ordenamento cosmológico que daria em sua Comédia.
Assim, o poeta parte da teoria ptolomaica da organização
do universo, a qual estava em vigor na Idade Média, de forma que assim
sintetiza:
E esta é a ordem das posições [dos
céus]: o primeiro céu a ser contado é onde está a Lua; o segundo é onde está
Mercúrio; o terceiro é onde está Vênus; o quarto é onde está o Sol; o quinto é
o de Marte, o sexto é o de Júpiter; o sétimo é o de Saturno; o oitavo é o das
Estrelas; o nono é o que não é perceptível senão pelo movimento antes
mencionado, chamado por muitos de Cristalino, isto é, diáfano, ou mesmo todo
transparente (Convívio, Trat. II; 3,7) [2].
Dante coloca estes como céus móveis, de acordo com a
própria teoria de Ptolomeu, ou seja, estes espaços celestes possuíam, cada um,
movimento próprio e, por assim dizer, uma natureza própria. Cada céu é regido
por um astro ou astros, de forma que eles são os responsáveis pelas influências
de certos acontecimentos e eventos aqui na terra sejam de caráter físico ou
espiritual. Entretanto, sabendo-se que esta obra se insere no medievo, estaria
incompleta a teoria se não considerasse o elemento cristão que a ela se
mesclou. De tal modo, se é acrescentado um décimo céu: o empíreo.
Na verdade, os católicos supõem o
céu Empíreo fora de todos esses, o que é equivalente a um céu de chamas ou
mesmo luminoso; e o supõem imóvel por ele conter em si, de acordo com cada uma
das suas partes, aquilo que a sua matéria requer [...] Quieto e pacífico é o
lugar da suma Divindade, a única a ver a si mesma por completo (Convívio, Trat.
II; 3,8.10) [3].
Este céu Empíreo estava vinculado ao motor imóvel
aristotélico que foi interpretado por Tomás de Aquino como sendo Deus mesmo.
Para a maioria dos pensadores desse período, Deus – motor imóvel – era a causa
do movimento de rotação dos outros nove céus. Dante também concorda com isso.
Contudo, sua exposição não se limita aqui, o poeta procura entender quem
governa cada um desses céus, isto é, que força os governa e os mantém em
movimento. Para Dante, resumindo as ideias de sua época, “os motores desses
céus são substâncias separadas da matéria, isto é, Inteligências, as quais a
gente comum chama de Anjos” (Convívio, Trat. II; 4,2) [4]. Com o intuito de
demonstrar a qual Inteligência competia tal céu, o poeta faz uso da divisão
hierárquica dos anjos feita por Gregório Magno.
Os espíritos angélicos [...] se
distinguem em certas dignidades – como Tronos, Dominações, Principados,
Potestades (Moralia, Lib. VI; 7,12) [5].
São nove os coros dos anjos. Pelo
testemunho das Escrituras sabemos que há: anjos, arcanjos, virtudes,
potestades, principados, dominações, tronos, querubins e serafins (Homilias
sobre os Evangelhos, Hom. XXXIV, 7) [6].
Partindo dessa descrição Dante escreve:
A Igreja as divide [as
Inteligência] em três hierarquias, ou mesmo três principados santos ou divinos,
sendo que cada hierarquia possui três ordens, de forma que ela mantém e afirma a
existência de nove ordens de criaturas espirituais. A primeira é a dos Anjos, a
segunda dos Arcanjos e a terceira dos Tronos; essas três ordens formam a
primeira hierarquia, não em relação à nobreza nem à criação (pois as outras são
mais nobres e todas foram criadas juntas), mas primeira em relação à nossa
subida em sua direção. Em seguida estão as Dominações, depois as Virtudes, e em
seguida os Principados, que formam a segunda hierarquia. Acima deles estão as Potestades
e os Querubins, e acima de todos estão os Serafins, formando a terceira
hierarquia (Convívio, Trat. II; 5,6) [7].
Para além disso, o poeta florentino ainda relaciona os
céus à ciências de sua época. Ele elenca três motivos para isso: primeiro,
porque as ciências se movem em torno de seu respectivo objeto de estudo, assim
como os céus se movem em si mesmos. Segundo, as ciências iluminam o intelecto,
do mesmo modo que os céus iluminam, direta ou indiretamente, a face terrestre. Terceiro,
e último, porque as ciências produzem no espírito humano a perfeição para qual
ele tende, assim como os céus fazem com a alma, fazendo-a tender à virtude que
está sempre mais alta (cf. Convívio, Trat. II; 13, 3-5). Considerando isso, as
associações entre céus e ciências se apresentam da seguinte forma:
Os sete primeiros céus, do nosso ponto
de vista, são os dos planetas; em seguida, depois deles, existem dois céus,
todos móveis; e mais um acima de todos, quieto. Aos sete primeiros correspondem
as sete ciências do trivium e do quadrivium, isto é, Gramática,
Dialética, Retórica, Aritmética, Música, Geometria e Astrologia. À oitava
esfera, isto é, a estrelada, correspondem a ciência natural, chamada Física, e
a primeira ciência, chamada Metafísica; à nona esfera corresponde a ciência
moral; e ao céu quieto corresponde a ciência divina, que é a Teologia
(Convívio, Trat. II; 13,7-8) [8].
Tendo visto como o Alighieri tratou os céus no Convívio,
convém, de igual modo, notar que eles participam da proposta que o autor
colocou em todo o conteúdo da obra. Para ele, seu texto lida com os sentidos da
escrita, a saber: literal, alegórico, anagógico e moral. Essa classificação dos
sentidos da escrita era um chavão para os teólogos e filósofos medievais, de
modo que, Dante os seguiu, porém, aplicando-os a sua própria escrita –
comentando suas próprias canções – e às suas concepções filosóficas, como se
poderá ver ao aplicar à temática dos céus. Para melhor compreender isso,
veja-se o que próprio florentino coloca ao definir esses sentidos:
Um se chama literal... O outro se
chama alegórico, e esse é o que] se esconde sob o manto dessas fábulas, sendo
uma verdade velada sob uma bela mentira. [...] O terceiro sentido se chama
moral, e esse é o que os comentadores devem observar atentamente nas
Escrituras, para o próprio proveito e para proveito dos seus descendentes.
[...] O quarto sentido se chama anagógico, isto é, um sobressentido, e esse é o
que se dá quando se expõe espiritualmente uma Escritura, a qual, ainda que seja
verdadeira também no sentido literal, remete à eterna glória pelas coisas que
significa. (Convívio, Trat. II; 1,2-7)
Aplicando cada sentido aos céus que
Dante expôs, tem-se o seguinte: o sentido literal fica encarregado de
demonstrar os céus como são em sua realidade – na época do poeta o sistema
ptolomaico –; a alegoria aparece quando o poeta relaciona estes mesmos céus com
as ciências de então; conquanto o sentido anagógico surge no momento no qual
começa-se a pensar sobre as Inteligências que os governam. À vista disso,
constrói-se a seguinte tabela:
|
SENTIDOS DA ESCRITA |
|
||||
Literal |
Alegórico |
Anagógico |
||||
C É U S |
I |
Lua |
Gramática
|
Anjos
|
I
hierarquia |
Inteligências
que governam o movimento dos céus móveis |
II |
Mercúrio
|
Dialética
|
Arcanjos
|
|||
III |
Vênus
|
Retórica
|
Tronos
|
|||
IV |
Sol
|
Aritmética
|
Dominações
|
II
hierarquia |
||
V |
Marte
|
Música
|
Virtudes
|
|||
VI |
Júpiter
|
Geometria
|
Principados
|
|||
VII |
Saturno
|
Astrologia
|
Potestades
|
III
hierarquia |
||
VIII |
Estrelas
fixas |
Física
e Metafísica |
Querubins
|
|||
IX |
Cristalino
(1° móvel) |
Ciência
moral |
Serafins
|
|||
X |
Empíreo
|
Teologia
|
Deus |
Poder
supremo |
Motor
imóvel |
O
sentido moral não aprece na tabela porque seu domínio será demonstrado somente quando
o sujeito, ao ler, adquira máximas e preceitos morais a partir de sua
interpretação. Desse modo, o sentido moral já não cabe apenas ao autor, como foi
com os outros, mas de forma especial ao interlocutor com quem ele fala e no
qual deseja incentivar comportamentos nobres.
Dante
era um homem de olhar para cima. Seus pensamentos e objetivos eram altivos, e
tudo em sua obra denuncia isso. Além disso, elas aludem para a vida do ser
humano que busca, sempre que pode, erguer-se até os céus, basta ver a Comédia
que inicia nos mais profundos dos fossos e termina no mais alto dos céus; ou
ainda Vida Nova e Convívio que atestam que o amor e a razão são
as asas pelas quais o poeta alça voos até o sublime com seu dolce stil nuovo.
Boccaccio, em sua biografia sobre o Alighieri, escreve que: “Ele tinha o
costume de se retirar para algum lugar solitário sempre que a turba vulgar o
incomodava, e ali refletir sobre qual espírito move o céu” [9].
[1] ZAMPOGNARO,
Carlos E. Dante Alighieri: o poeta filósofo. São Paulo, Lafonte, 2011.
p. 82
[2] ALIGHIERI, Dante.
Convívio. São Paulo, Penguin-Companhia das letras, 2019. p. 146.
[3] Op. Cit. p. 147.
[4] Op. Cit. p. 149
[5] GREGÓRIO, Magno. Libros
Morales 1: I-V. Madrid, Ciudad Nueva, 1998. p. 250.
[6] GREGÓRIO, Magno. Antologia.
Disponível em: https://doceru.com/doc/xv0sssx - acesso em 18
mar. 2024.
[7] ALIGHIERI, Dante.
Convívio. São Paulo, Penguin-Companhia das letras, 2019. p. 152-153.
[8] Op. Cit. p. 172-173.
[9] BOCCACCIO, Giovanni. Vida de Dante. São Paulo, Penguin-Companhia das letras, 2021. Ebook.