domingo, 5 de fevereiro de 2023

O PRINCÍPIO CRIATIVIDADE

 

[Os pilares da Criação. Image: James Webb]

Bruno R. Sales

    Desde que sentiu a estranha necessidade de pintar as paredes das cavernas, a humanidade tornou-se refém da criatividade. Mas, talvez seja precipitado dizer isso delimitando nas datas das pinturas rupestres, pois, o processo de conscientização da espécie Homo teve seu início antes disto e, no fim das contas, os desenhos imaginados ou copiados, a partir do ambiente em que viviam, foram consequência desse processo. Entretanto, é preciso partir de algo, e as pinturas foram as primeiras formas de fixação das criações humanas. Desse modo, a história da humanidade é, também, a história das suas criações: da música, da literatura, das artes em geral.

Tendo isso em mente, surge a pergunta: por que o ser humano cria coisas? A humanidade cria coisas para realizar-se no modo de apreensão e expressão; apreensão do mundo e expressão de suas afecções. Isso significa que, em sua existência, o sujeito sente a irresistível necessidade de expressar tudo que apreendeu daquilo que o cerca, de igual modo, manifestar a forma como foi afetado por tal.

Mas, qual a razão dessa necessidade de expressão? Bem! Trata-se de uma consequência do longo processo de ampliação e complexificação da racionalidade e consciência humana. Quando o ser humano começou a perceber mais coisas do que podia guarda para si somente; quando ele deu o passo além da mera sobrevivência instintiva e notou o quão grande eram as realidades exteriores e interiores a si mesmo, ele sentiu a necessidade de expressar. Como que uma vasilha que transborda em decorrência da imensa quantidade de água posta nela; assim também o humano quando encheu-se de experiências cognitivas. A partir disso o princípio criativo tornou-se um elemento indispensável para o sujeito. De maneira que, ou há possibilidade de expressão – seja ela de que tipo for – ou o sujeito sucumbe e arruína-se. De um modo geral, esse aspecto permanece inscrito no espirito do homem até que deixe de existir a humanidade.

Atrelado a isso, cada época haverá de ter uma correspondência específica em relação a esse princípio criatividade, isto é, ocorrerão – como ocorreram e ocorrem – certas variações a respeito das funções dele. Em nossos dias, a criatividade não tem a mesma funcionalidade de épocas anteriores. Então, tendo já a premissa da necessidade criativa, coloquemos a pergunta novamente, mas com a devida alteração:  por que, atualmente, o ser humano cria coisas? A resposta: Ele cria para diferenciar-se das coisas e afirmar-se como ser. Refere-se, portanto, à oposição entre o movimento de reificação e a consciência de autoafirmação de si como ser existente, criativo e criador.

Essa condição da criatividade sempre esteve presente na história, porém, seu estabelecimento definitivo deu-se após as revoluções industriais e tecnológicas que se seguiram nos últimos dois séculos. Ademais, é interesse observar que, os erros que acometiam esse aspecto da humanidade no passado, eram de as sociedades mais desenvolvidas acharem as expressões criativas de sujeitos de outras que não estavam em seu patamar, como sub-humanas ou arcaicas e desnecessárias. Após a tecnicização acontece algo pior, pois, o sujeito é visto não como sub-humano, mas como coisa, de modo que se lhe é negado o aspecto criativo. Uma coisa jamais pode criar. Mesmo aquilo que hoje se denomina como Inteligência Artificial não cria, apenas combina algoritmos criados de antemão pelo programador ou quem quer que seja que lhe desenvolva.

Em sua primeira obra, Pobre gente, Dostoievski elabora o perfil de um de seus personagens que se adequa ao que trato aqui. Makar Aliekséievitch é um copista, sua função é simplesmente copiar os documentos que os chefes da repartição lhes mandam. Em termos simples, ele é uma máquina humana de xerox. E no decorrer da história não passa disso. Contudo, sua vontade vai além, o autor explicita a psiquê de Makar, lhe mostra desejoso de criar qualquer coisa, escrever algo que seja expressão daquilo que ele é, que sente e experimenta:

E o que é que aconteceria se... Pois para dizer a verdade, às vezes isso me passa pela cabeça... Que aconteceria se eu me pusesse também a escrever?[1]

Makar pretende diferenciar-se de uma máquina, deixando de lado um pouco a cópia de criação de outros e escrevendo ele mesmo, criando, algo que lhe afirmasse como ser vivente e consciente de si. E, para permanecer no pensamento dostoievskiano, o autor russo evidencia a situação reificação versus humanização nas palavras do homem do subsolo:

O homem deseja a todo custo conservar os seus quiméricos sonhos, a sua rasteira sandice, só com o fim de afirmar a si próprio (como se fosse muito necessário) que os homens são homens e não pianos, que obedecem às leis da natureza. [...] Assim o creio e o afirmo, porque toda ocupação humana consiste precisamente em o homem provar a cada instante a si próprio que é homem e não piano![2]

Apesar de situar-se no século XIX, esse pensamento é atual. Destarte, isso também demonstra que a afirmação humanizante através da criação é uma preocupação constante desde que o homo res [homem coisa] pôde ser concebido como realidade fundamentada.



[1] DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Pobre Gente. In: Obra Completa I. São Paulo, Nova Aguilar, 2019. p. 190

[2] DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Memórias do subterrâneo. In: Obra Completa II. São Paulo, Nova Aguilar, 2019. p. 587


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