Bruno R. Sales
[Antes da leitura deste texto, aconselho ler a parábola kafkiana Diante da lei, cujo link se segue: https://farofafilosofica.wordpress.com/2018/09/18/diante-de-lei-texto-de-franz-kafka/]
. .
Sem dúvidas Franz Kafka é um dos
autores mais polissêmicos se tratando de suas obras, isto é, não há como
extrair de seus escritos apenas uma só interpretação ou perspectiva sobre o
mundo e o homem; as leituras e releituras deles permitem que as interpretações
se proliferem de acordo com a imaginação e o pensamento de quem os lê. Isso
acontece como resultado da escrita surrealista de Kafka, cujas personagens e
enredos controversos e agoniantes insistem em fazer o leitor pensar.
Considerando a teoria literária de
Roland Barthes, pode-se implicar que os textos kafkianos “são perversos pelo
fato de estarem fora de qualquer finalidade imaginável – mesmo a do prazer.
Nenhum álibi resiste, nada se reconstitui, nada se recupera. O texto é
absolutamente intransitivo” [1]. Seus livros não possuem
uma única mensagem para ser posta sobre o papel, mas várias, que jazem sob os
aspectos mais inusitados apresentados neles. Desde o macaco que pretende provar
que se tornou um ser humano – Um relatório à Academia (1917), porque
aprendeu seus costumes, até um jovem que é réu de um processo sem saber qual
crime cometeu – O processo (1914). Na verdade, o que ocorre é que se é
pego de surpresa pela escrita dele. O próprio Kafka parece admitir essa ideia
sobre como devem ser os textos:
Os livros são úteis
em todos os sentidos e sobretudo onde não se espera. Quando se empreende algo,
são precisamente os livros cujo conteúdo não tem nada a ver com a tarefa, os
mais úteis. Pois o leitor que, no entanto, se propõe a dita tarefa, de certa
forma está apaixonado e se vê forçado a efetuar alguns pensamentos relacionados
com seu empreendimento [2].
A estranheza – e o leve desconforto – que
o leitor vivência lendo Kafka proporciona o espanto necessário para que o
pensamento insista em querer compreendê-lo mais profundamente. Tal insistência
é força motriz que gera as diversas interpretações.
Por isso, todo o exposto nas linhas que se sucederão, em realidade, nada mais é que uma interpretação realizada a partir do espanto tomado após a leitura de um texto de Kafka, de maneira específica do conto Diante da lei (1914).
O
homem e a lei
O que é a lei no universo kafkiano? Não
existe resposta para tal pergunta. Kafka não estruturou seus pensamentos sobre
a lei de modo que formulasse um conceito positivo sobre ela. O caminho seguido
pelo autor é uma definição causal e negativa, isto é, ele a apresenta através
de elementos que só podem ser causa de uma lei, a saber: culpa e punição.
A ideia de culpa sempre perpassa as obras
desse autor, de um modo ou de outro seus personagens são culpados. A culpa do
homem é, em Kafka, uma releitura literária do pecado original. O ser humano se
compreende como culpado, pois sabe à qual punição está submetido: a morte, e,
portanto, ao não-ser.
Diante da lei o homem tem um único
direito: o de existir. Entretanto, ainda que tal seja resumido em uma palavra,
não significa que se trata de pouca coisa; ao contrário, em sua profundidade, o
simples fato de existir abre um leque de questões e possibilidades para o
homem, pois, ele existe e sua existência é carregada daquilo que é própria do
existir. Como exemplo temos a explicação que o sacerdote faz para Joseph K. n’O
processo ao expor sobre a parábola da lei:
O homem livre é
superior àquele que está sujeito. Se se senta no banco ao lado da porta e aí
passa a vida inteira, é por vontade sua, a história não menciona nenhuma
imposição[3].
Se a existência diante da lei possui tal liberdade, por que motivo existe a lei? Ora, uma legislação é criada para impor limites, e isso é o que acontece. O campesino é limitado, talvez não por sua vontade, mas em sua existência, seu limite é o não-existir (ou deixar-de-existir). De tal modo, sendo a lei uma fronteira, para cruzar sua porta o campesino precisa “gastar” seu ser, beirando a morte para atravessá-la. Numa perspectiva kafkiana, a porta representa sempre uma barreira, o limiar de até onde o sujeito pode ir. Isso é o paradoxo da liberdade posto por ele – que não é novo, posto que se trata da discussão entre liberdade de e liberdade para –, o autor deixa isso claro em um de seus aforismos:
Ele é um cidadão livre e seguro da Terra, pois está atado a uma corrente suficientemente longa para dar-lhe livre acesso a todos os espaços terrenos e, no entanto, longa apenas para que nada seja capaz de arrancá-lo dos limites da Terra. Mas é, o mesmo tempo, também um cidadão livre e seguro do céu, uma vez que está igualmente atado a uma corrente celeste calculada de maneira semelhante. Assim, se quer descer à Terra, a coleira do céu o enforca; se quer subir ao céu, enforca-o a coleira da Terra. A despeito de tudo, tem todas a possibilidades e as sente, recusando-se mesmo a atribuir o que acontece a um erro cometido no primeiro ato de acorrentar [4].
Diante da lei o homem sujeito a ela
é livre, mas somente para tomar consciência de sua finitude e culpabilidade. Ele
é livre para permanecer perante a lei, mas não para sair dela. O indivíduo kafkiano não escapa à legislação, visto que ela é absoluta. Como acima dito, diante dela
o direito do homem é existir. Para Kafka, todos nós estamos aprisionados em
nossa existência até que possamos atravessar os portões da lei rumo ao não-ser.
[1] BARTHES, Roland. O
prazer do texto. São Paulo, Editora Perspectiva, 1973. p. 68
[2] KAFKA, Franz.
Preparativos para una boda en el campo. In: Obras completas de Franz Kafka I.
Barcelona, Booktrade, 2014. p. 74
[3] KAFKA, Franz. El
proceso. In: Obras completas de Franz Kafka II. Barcelona, Booktrade,
2014. p. 564
[4] KAKFA, Franz. Essencial
Franz Kafka. São Paulo, Peguin classics/Companhia das letras, 2011. p.199