Bruno R. Sales
O que é a Verdade? Essa questão preocupa os
pensadores desde os primórdios do pensamento filosófico. Durante a passagem do
tempo, alguns deixaram-na escanteada ou decidiram não profundar nela; outros
tentaram elucida-la à exaustão. Das discussões promovidas sobre a verdade
fizeram dela um poliedro espelhado no qual cada lado reflete uma ideia ou
conceito diferente em relação a ela. Isso significa que, embora tendo aspectos
comuns no cerne [quando afirmo isso tenho em mente as premissas básicas da
Verdade: ela é a adequação da coisa ao intelecto (garante o real) e é oposição
à mentira (garante argumentos válidos)], aspectos específicos diferenciam as
diversas formas de lidar filosoficamente com a questão. Essas parcas
considerações se propõem ser uma vista rápida no lado espelhado do poliedro que
reflete a convicções de Albert Camus. Os aspectos aqui considerados sobre a
verdade para o franco-argelino são apenas apontamentos para posterior
discussão. E, evidentemente, esse pequeno texto não esgota toda a complexidade
do tema.
Antes do mais, considere-se que Camus não
crê numa verdade absoluta. Tal ideia aparece na obra camusiana como parâmetro
para o suicídio filosófico, isto é, negar a consciência do absurdo para abraçar
ilusões que são tomadas sob os aspectos de “razões de viver” [1]. Não à toa ele estabelece:
“a noção de absurdo é essencial e pode figurar como a primeira das minhas
verdades” [2]. Portanto, a premissa
camusiana é o absurdo, a partir dessa perspectiva é analisada toda a realidade.
A verdade camusiana está assentada no
terreno do puro humano e suas experiências na vida, e não numa realidade
transcendente fora daquilo que é do homem. Isso significa que Camus não busca a
Verdade (em termos metafísicos e ontológicos), mas o que é verdadeiro; isso
demonstra uma postura de quem não procura por ideias absolutas, mas por
certezas que firmam seus pés no real e na consciência do absurdo. N’O Mito
de Sísifo essa escolha pelas certezas se manifesta na bifurcação entre a
história e o eterno; escreve o filósofo: “entre a história e o eterno, escolhi
a história porque amo as certezas” [3]. Ao que parece Verdade se
torna sinônimo de ‘certezas’ e ‘verdadeiro’. E quando somadas essas palavras
outro sinônimo surge e, parece-me, ele determina a ideia de Verdade camusiana,
a saber: certezas verdadeiras [4].
A pretensão do filósofo franco-argelino é
fugir, ou ao menos evitar o máximo possível, uma verdade ontológica. Para
tanto, em função do forte acento antropológico, sua ideia sobre a verdade se
baseia numa espécie de ‘dever’, um tipo de imperativo categórico aos moldes de
Kant, é, pois, uma verdade deontológica. Esse tipo de compreensão se desdobra em
duas formas de uso – ou dever – da verdade, uma subjetiva e outra
intersubjetiva. Trata-se da honestidade e da sinceridade, respectivamente.
A respeito da honestidade pode-se
observar, em Camus, como o dever da verdade consigo mesmo. Baseado no
reconhecimento do absurdo que está diante de si, refere-se à condição de
permanecer consciente da realidade absurda e tudo o que ela comporta
(consciência da finitude, infelicidade, sofrimento, etc.). O próprio filósofo
deixou em seus cadernos a seguinte síntese sobre esse assunto que pode ser
aplicada à honestidade:
Viva na e para a
verdade. A verdade de quem somos em primeiro lugar. Renunciar a compor com os
seres. A verdade do que é. Não engane a realidade. Aceite, portanto, sua
originalidade e sua impotência. Viver segundo esta originalidade até esta
impotência. No centro a criação com as imensas forças de ser finalmente
respeitado. A mentira coloca você para dormir ou sonhar, como a ilusão. A
verdade é o único poder, alegre, inesgotável. Se pudéssemos viver apenas da e
para a verdade: energia jovem e imortal dentro de nós. O homem de verdade não
envelhece. Mais um esforço e ele não morrerá [5].
Ser honesto é uma das qualidades do homem
absurdo. Ele não quer cair no autoengano, ao contrário, seu desejo é permanecer
consciente daquilo que ele é. Isso se torna interessante quando se considera
que o importante é o presente como categoria do hic et nunc (aqui e
agora). Desse modo, o homem absurdo é verdadeiro consigo, usando de
honestidade, porque sua preocupação é, temporalmente, agora, e, espacialmente,
aqui. Tal homem, “seguro de sua liberdade com prazo determinado, de sua revolta
sem futuro e de sua consciência perecível, prossegue sua aventura no tempo de
sua vida. Este é seu campo, lá está sua ação, que ele subtrai a todo juízo
exceto o próprio. Uma vida maior não pode significar para ele uma outra vida. Seria
desonesto” [6].
Por conseguinte, intersubjetivamente,
tem-se a sinceridade como dever da verdade com os outros. O ser sincero é
compreendido como impulsos morais do sujeito, portanto, lida com o modo de
tratamento com os outros [7]. Nos romances de Camus, a sinceridade
é demonstrada como a outra face da verdade do homem absurdo. O expoente desses
é O estrangeiro, do qual o próprio autor dissera se tratar da loucura da
sinceridade onde o personagem principal, Mersault, não quer demonstrar nada
além daquilo que ele sente [8], transformando-o no modelo
do homem sincero. N’A peste, Dr. Rieux é a síntese do homem absurdo em
sua honestidade, por ele saber que a praga faz parte de um mundo absurdo, e sua
sinceridade, por considerar que é demasiado cansativo mentir, sendo preferível o
uso constante da verdade [9].
Camus não desenvolveu por completo o
raciocínio sobre a sinceridade, sua pretensão era inseri-la no terceiro
tríptico sobre o amor, porém, sua morte precoce privou-nos disso. Pode-se
constatar tal coisa devido a uma anotação em seu cahier VIII:
O terceiro andar é o
amor: o Primeiro Homem, Don Fausto. O mito de Nêmesis.
O método é a
sinceridade [10].
Contudo, mesmo não desenvolvendo o tema, o
filósofo deixou as bases sobre as quais haveria de fazê-lo. Grosso modo, a
sinceridade se insere como um princípio de verdade a ser usada com os outros e,
concomitantemente, como uma categoria importante na visão moral camusiana.
A título de considerações finais, é
preciso ter em mente que Albert Camus trabalha em duas linhas, uma horizontal e
outra vertical. Tais linhas apresentam em si mesmas seus limites. A vertical
não atinge os céus – seu tamanho não é infinito – ela limita-se a ser da altura
do homem em sua estatura ereta; em outros termos, o homem pensa verticalmente
sobre aquilo que sua estatura alcança. Horizontalmente, os limites são impostos
pelos mesmos motivos, o ser humano não atinge, em seu horizonte, coisas que não
estão ao seu alcance. Assim, a verdade camusiana tem limites humanos, não sem
razão, pois, o filósofo confessa: “Quero libertar o meu universo de seus
fantasmas e povoá-lo apenas com verdades de carne cuja presença não possa negar”
[11].
[1] Cf. CAMUS, Albert. O mito de
Sísifo. Rio de Janeiro, Record, 2020. p. 22-25
[2] Ibidem. p. 59
[3] Ibidem. p. 144.
[4] No restante do
texto, o termo Verdade referir-se-á a esse significado.
[5] CAMUS, Albert. Carnets III:
mars 1951 – decembre 1959. Paris, Editions Gallimard, 1989. p. 223.
[6] CAMUS, Albert. O
mito de Sísifo. Rio de Janeiro, Record, 2020. p. 112.
[7] Ibidem. p. 31.
[8] Cf. ALBERT CAMUS: Un Combat Contre
L'Absurde. Direção: James Kent. Produção de Pascale Lamche. França. La sept
art/B.B.C./Cie des phrases e balises. 1997. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Cx9hn-8zonc&t=1255s – acesso em 26 jul 2022.
[9] CAMUS, Albert. A
peste. Rio de Janeiro, Record, 2020. p. 280.
[10] CAMUS, Albert. Carnets III:
mars 1951 – decembre 1959. Paris, Editions Gallimard, 1989. P. 187.
[11] CAMUS, Albert. O
mito de Sísifo. Rio de Janeiro, Record, 2020. p. 166-167