quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

A VITÓRIA DE AUGUSTO DOS ANJOS

 


Bruno R. Sales 

Introdução

            A humanidade luta. A vida, toda ela, é em realidade uma grande luta. Não há nada mais verossímil que afirmar que viver é lutar, enquanto sobreviver é combater. Entre a luta e o combate existem sutis diferenças, não em seus cernes, mas no contexto em que se apresentam. Vida-luta é constante, cotidiana, ordinária; a Sobrevivência-combate é pontual, eventual e extraordinária. Luta-se todos os dias para manter-se vivo, sustentado, alimentado e sem atraso nas contas. Sobrevive-se, combatendo diante de um ambiente hostil, seja numa guerra ou crise, por exemplo. Não raro, vida e sobrevivência se cruzam e sobrecarregam os pobres sujeitos que além de lutarem precisam combater, isto é, mais que viverem, precisam sobreviver. É o peso redobrado da cruz: o madeiro e os pecados.

            A poesia de Augusto dos Anjos retrata esse cruzamento do viver-sobreviver. Nela o eu lírico luta cotidianamente, ou contra as dores desse mundo, ou para aceita-las budisticamente; e sobrevive combatendo num ambiente hostil, como doentes que tentam combater a doença. E, como em todos os conflitos, existem vencedores e vencidos. E o poeta paraibano tinha consciência disso. É em função disso que denomino tríptico da vitória os três sonetos que trazem esse tema, a saber: Psicologia de um vencido, Vencido e Vencedor.

            A vitória é o elemento central numa luta. E, considerando os poemas de Augusto, ela se apresenta de duas formas, positiva e negativa. Negativamente nos dois sonetos Psicologia de um vencido e Vencido onde ela assume a face da vitória do outro lado que combate, por isso o termo “vencido”, relativo à não-vitória daquele que fala pelos versos. Sob outra perspectiva, ela se apresenta positivamente no poema de titulação “vencedor”, portanto, alguém a quem pertence a vitória e cujo objetivo alcançou. Sobre esse pressuposto baseio o tríptico do qual dissertarei. Sobre isso tentarei dizer alguma coisa útil.

Para essa tarefa será feita uma análise em duas partes. A primeira, sincrônica, tomando por pressuposto a ordem cronológica da composição dos mencionados sonetos. A segunda, diacrônica, será mais literária, e considerar-se-á a ordem posta pelo autor no livro Eu (1912). De igual modo, convém dizer que utilizarei apenas a obra Eu em sua forma originária de como Augusto o publicou em vida, ou seja, sem as outras poesias ou os poemas esquecidos.

Análise sincrônica: Ordem de composição

             Seguindo a tábua cronológica de composição dos poemas de Augusto do Anjos, elaborada por Francisco de Assis Barbosa [1]; os sonetos acima citados foram compostos nas seguintes datas e locais:

Vencedor

1902

Pau d’Arco

Psicologia de um vencido

1909

Paraíba (Atual João Pessoa)

Vencido

1909

Paraíba (Atual João Pessoa)

            Agora, considerando o caminho da vida do poeta em seus aspectos biográficos e de evolução literária, tem-se a tênue – e hipoteticamente frágil – possibilidade de avaliar o desenvolvimento temático do tríptico.

            Em primeiro lugar, consideremos os aspectos biográficos. Augusto nascera e crescera numa virada de século, mais que isso, numa transformação social que fervilhava na sociedade brasileira na passagem do séc. XIX para o XX. Passara a adolescência vendo seu pai doente imóvel numa cama, e depois vira-o morto. Testemunhara o declínio dos engenhos da família, e com eles declinava também o nome da família latifundiária dos Carvalho de Pacatuba [2].

“É nesse ambiente de decadência, doença e luto que vive Augusto dos Anjos. Mas o que desmorona não é apenas sua própria família: é todo um amplo setor da classe latifundiária do Nordeste atingida pelas transformações econômicas, sociais e políticas das últimas décadas: a abolição da escravatura, a proclamação da República, a construção da The Conde d’Eu Railway Company Limited, o estabelecimento da Companhia de Engenhos Centrais anglo-holandesas. É a penetração do capitalismo que, se por um lado leva progresso, por outro agrava a miséria legendária da região. Assim, tudo em sua volta parece estar morrendo, desmoronando” [3].

            Com isso, a feitura dos poemas parece transparecer a realidade do poeta paraibano. Ele deixa a aparente posição de vencedor e torna-se um vencido. Derrotado pela inevitável decadência de sua terra de criação, o Engenho Pau d’Arco, vendo transformarem-se em ruínas os locais de sua infância. Presenciando o pai doente, magoado por uma mão sombria [4], e algum tempo depois tendo que expressar: “Podre meu pai! A morte o olhar lhe vidra” [5]. Esses são apenas alguns elementos que venceram Augusto, talvez existam mais, e eles devem existir, não se pode simplificar a vida de um sujeito desse modo. Mas, por enquanto, convém que esses sejam trazidos à essa dissertação.

            Em segundo lugar, o desenvolvimento literário de Augusto tem confluência com o “ambiente decadente” em que vivia. Como estudante, tivera contato com Haeckel, Spencer e Schopenhauer. Com eles aprendeu, respectivamente, os limites da ciência, que não pode penetrar os mistérios; que as moneras originaram todos os seres; e o pessimismo que envolve o ser humano neste mundo cheio de dores. Assimilara o cientificismo e o materialismo para sua poesia, aos poucos deixava de lado o romantismo e o simbolismo, e criava seu próprio estilo. Dado isso, o estilo de escrita parece também denunciar o movimento de vencedor à vencido, exercido por Augusto.

O primeiro soneto, Vencedor (1902) está inserido na primeira fase do poeta, de 1901 a 1905 [6]. Nessa fase, ele “verseja incipientemente como simbolista, misturando influências dessa escola com resquícios românticos e parnasianos” [7]. O caráter idealista, jovial e esperançoso desse poema demonstra tais coisas.

Toma as espadas rútilas, guerreiro,

E à rutilância das espadas, toma

A adaga de aço, o gládio de aço, e doma

Meu coração — estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro

E o mais possante gladiador de Roma.

E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,

Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.

Veio depois um domador de hienas

E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...

E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,

Que ninguém doma um coração de poeta! [8]

            Já os outros – Psicologia de um vencido e Vencido – se situam na segunda fase da poesia anjosiana, de 1905-6 à 1910. Nessa fase, Augusto já enxerga o mundo sob a lente do cientificismo e do pessimismo schopenhaueriano. Não só isso, em 1905, morre seu pai; e em 1910 o Engenho Pau d’Arco entra em falência e é hipotecado. Augusto, nessa etapa, contempla de perto a decadência dos seus. Ele encarna o vencido, e parece admitir isso, deixando à mostra a psicologia do mesmo.

Análise diacrônica: Ordem literária

            Ao contrário da ordem de composição, Augusto dispôs os sonetos do tríptico em movimento ascendente, isto é, do vencido ao vencedor. No livro Eu (1912), o poeta dispôs primeiro Psicologia de um vencido (1909).

Eu, filho do carbono e do amoníaco,

Monstro de escuridão e rutilância,

Sofro, desde a epigênese da infância,

A influência má dos signos do zodíaco.

Produndissimamente hipocondríaco,

Este ambiente me causa repugnância...

Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia

Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas –

Que o sangue podre das carnificinas

Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,

E há de deixar-me apenas os cabelos,

Na frialdade inorgânica da terra! [9]

            Em seguida, vem o soneto Vencido:

No auge de atordoadora e ávida sanha

Leu tudo, desde o mais prístino mito,

por exemplo: o do boi Ápis do Egito

Ao velho Niebelungen da Alemanha.

Acometido de uma febre estranha

Sem o escândalo fônico de um grito,

mergulhou a cabeça no Infinito,

Arrancou os cabelos na montanha!

Desceu depois à gleba mais bastarda,

Pondo a áurea insígnia heráldica da farda

À vontade do vômito plebeu...

E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria

O vencido pensava que cuspia

Na célula infeliz de onde nasceu. [10]

            E por fim, o poema Vencedor – já exposto acima. O caminho do Eu lírico na disposição literária é de anti-decadência. Psicologia de um vencido, mostra as fraquezas e os receios que se passam na mente do Eu, autodenominado filho do carbono e do amoníaco, portanto, pura matéria. Matéria esta cujo principal receio é o verme que espreita seus olhos como alimento. Nesse momento se apresenta a decadência do Eu, não se trata de sua morte, mas da terrível possibilidade dela. O pessimismo nesse soneto demonstra a alma profunda do Eu do segundo poema, Vencido.

            Em Vencido, nota-se uma escalada do fundo da hipocondria profundíssima, que o Eu expressa em sua psicologia. Ele procura ler com a avidez, isto é, quase que com desespero, todas as fontes de sabedoria, os mitos de todas as partes do mundo – do Egito à Alemanha. Além disso, o vencido está acometido por uma misteriosa febre e um estranho silêncio que não lhe deixa gritar sonoramente. Ele mergulha no infinito silêncio dos condenados.

            O vencido já demonstra luta e atividade, pois, se no fim de Psicologia de um vencido o verme era o agente que o deixaria, passivamente, na frialdade da terra. Agora, ele mesmo toma atitude e ao vir a gosma salivar à boca, pensava cuspir “na célula infeliz de onde nasceu’, ou seja, na terra fria na qual jazia. O vencido deseja lutar contra o pó ao qual retornará.

            Os dois primeiros sonetos do tríptico são degraus para chegar ao último. Portanto, em Vencedor, o Eu descobre quem é capaz de vencer seus receios, suas dúvidas, suas hipocondrias e febres estranhas: seu próprio coração. Não o órgão bombeador de sangue, pois este também o verme há de roê-lo; mas aquele ‘órgão’ espiritual do qual brotam a vitalidade e vivacidade das sensações, emoções e criações do homem.

            O Eu, depressivo e melancólico do começo, tem um lampejo de misticismo e espiritualidade. Descobre que ninguém pode domar seu coração; que ele é o vencedor do qual nem escuridão e rutilância de sua psicologia, nem as rútilas espadas dos guerreiros podem obter vitória sobre ele. No último soneto do tríptico a luz da vitória alcança o vencido, pois no fundo ele se descobre vencedor. E indo além, em relação ao caminho de ascensão do vencido ao vencedor a esperança é esta: que sobre mim, filho do carbono e do amoníaco, triunfe meu coração.

Psicologia de um vencido e Vencido exalam a doença, o desespero e a mente atordoada e sôfrega do Eu. Vencedor é um poema de jovial vigor – talvez devido o período em que foi composto – em função disso, ele é esperançoso, rijo e corajoso. Tudo isso gravitando em torno do coração, porque ninguém doma um coração de poeta!

“Coração, instinto e princípios” [11]. É pelo coração indomável que o Eu pode alcançar o Nirvana, a tranquilidade de sua alma, a aceitação estoica da finitude e a budista compreensão da profunda unidade dos seres vivos. No alheamento da obscura forma humana, no desencarceramento da matéria, isto é, num lampejo espiritual, o poeta encontra seu sincero Nirvana [12].

Considerações finais

        A vida de um sujeito – de um artista – inevitavelmente aparece em sua obra, não é diferente com Augusto dos Anjos. Suas experiências estão sutilmente imiscuídas nas profundas entrelinhas dos versos do Eu. Não é uma biografia, pois não seria possível dizer sua obra nesses termos, mas é uma maneira racionalizada de dizer o que queria que tivesse sido sua vida.

Do vencido ao vencedor, assim ele organizou o tríptico no Eu, porque não pôde realizar em sua vida. Sentia-se vencido, na materialidade; porém, podia ser vencedor em seu espírito – define-se por idealismo, mas também por esperança. Isso parece ser um pouco difícil de incutir ao poeta de Sapé, posto que, “a sua posição genuína é a de um solitário, para quem não havia amanhã, nem esperança” [13]. Mas, o desesperançado, na busca pela esperança, encontra no desespero sua esperança única. Augusto, fez do desespero pelo nirvana sua esperança de vitória. Augusto fora um vencido, mas jamais um derrotado.

O poeta paraibano ensina que a luta é a existência nesta terra de ingratidão, onde ninguém assiste o formidável enterro de sua última quimera [14]. Ele almejava a vitória sobre a dura vida social, à ingrata crítica literária de sua época, ao tempo que consumiu sua infância e os momentos saudosos no engenho Pau d’Arco. Ele queria vencer sobre os mistérios, acentuadamente os da morte. E para vencer um mistério, somente um mistério maior ainda, e o coração é mistério gigantesco, como afirma Pascal: o coração tem suas razões, que a razão não conhece [15]. Eis o vencedor!



[1] BARBOSA, Francisco de Assis. Edição crítica. in. COUTINHO, Afrânio. Augusto dos Anjos: textos críticos. Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1973. pp. 67-94

[2] cf. REGO, José Lins. Augusto dos Anjos e o engenho Pau d’Arco. in. COUTINHO, Afrânio. Augusto dos Anjos: textos críticos. Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1973. pp. 205-214.

[3] GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina. p. 16. disponível em: https://pt.scribd.com/document/394804883/GULLAR-Ferreira-Augusto-Dos-Anjos-Ou-Vida-e-Morte-Nordestina - acesso em 15 nov 2021.

[4] cf. Sonetos (A meu pai doente). in: ANJOS, Augusto dos. Eu. São Paulo, Hedra, 2012. p. 142.

[5] Sonetos (A meu pai morto). Ibid. p. 143.

[6] cf. GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina. p. 55-68. disponível em: https://pt.scribd.com/document/394804883/GULLAR-Ferreira-Augusto-Dos-Anjos-Ou-Vida-e-Morte-Nordestina - acesso em 15 nov 2021

[7] Ibidem. p. 55.

[8] Vencedor. in: ANJOS, Augusto dos. Eu. São Paulo, Hedra, 2012. p. 154.

[9] Psicologia de um vencido. in: ANJOS, Augusto dos. Eu. São Paulo, Hedra, 2012. p. 72.

[10] Vencido. Ibidem. p. 146.

[11] PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Nova cultural, 1999 (os Pensadores). p. 104.

[12] cf. Meu Nirvana. in ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv.00054a.pdf - acesso 17 nov 2021.

[13] LINS, Álvaro. Augusto dos Anjos: poeta moderno. in. COUTINHO, Afrânio. Augusto dos Anjos: textos críticos. Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1973. p. 188

[14] Versos íntimos. in: ANJOS, Augusto dos. Eu. São Paulo, Hedra, 2012. p. 153.

[15] PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Nova cultural, 1999 (os Pensadores). p. 104.

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