sexta-feira, 21 de julho de 2023

A ESTÉTICA DIVINA NO CRISTIANISMO ANTIGO (A aplicação do conceito do Belo à figura de Jesus Cristo)

 


Bruno R. Sales

Introdução

 Uma imagem de um crucificado esculpida por algum santeiro, cujos traços, imperfeitos deixam membros superiores maiores que os inferiores. Seu rosto se assemelha àquele estilo românico arcaico do séc. XI. Os olhos cerrados, afirmam que a vida já se foi. As feridas se apresentam como pontos vermelhos nos pés, joelhos, lado, mãos e testa. A assimetria deixa a figura com aspecto ainda mais sofrido. Os pregos, pedacinhos de madeira, prendem a figura de um homem a uma cruz preta com adornos em latão dourado nas pontas e um esplendor, do mesmo material, atrás de si. A representação semi-glorificada de um ato assassínio. Olha-se para essa obra e se diz: “como é bela!”.

   O sentimento de beleza, suscitado num cristão, por um crucifixo, não é de modo algum, mero sentir estético, mas uma demonstração do sentimento religioso que se manifesta ao vê-lo. De tal modo, a estética divina produzida pelo Cristianismo não se caracteriza puramente como uma categoria filosófica, ela é, antes de tudo, teológica. Nesses termos, isso significa que a “estetificação” do belo ainda não ocorreu, isto é, não transparece na experiência da beleza aquela neutralidade, que beira a indiferença, diante da representação de algo que diz sobre sua fé. Isso acontece, de acordo com Hans Balthasar, devido o vínculo entre o belo e a Revelação cristã[1].

   Posto que se trata de uma experiência religiosa – de cunho predominantemente teológico – a estética da figura de Jesus foi vista e relida a partir dos aportes da teologia cristã. Considerando isso, poderá perceber que, à medida das mudanças nas discussões teológicas, muda-se também a maneira de representar o Cristo. Isso acontece por duas razões: 1) para manifestar à comunidade dos fieis a mensagem da teologia de então; 2) para legitimar a forma de visão teológica que se quer demonstrar, pois, a representação artística de alguma parte da doutrina cristã, de certo modo, implica a tentativa de validação da mesma – basta ver os exemplos da Idade Média ou Renascimento, que recorriam a arte como forma de legitimar os dogmas e crenças daquela época.

    No Cristianismo Antigo, também essa condição teológica foi motivadora de como se deveria enxergar e representar a figura de Jesus Cristo. Não obstante isso, em determinado momento de transição, duas visões teológicas se encontraram. Uma se referia à forma inicial que os cristãos aplicaram a Jesus: o bom pastor [sinal do ressuscitado]. A outra refere-se à uma visão um pouco mais tardia – mas não tanto – que é a do crucificado. Qual delas deveria prevalecer? Como os cristãos aplicaram o conceito do Belo à figura de Jesus?

Análise terminológica

     Antes de iniciar a discussão, para se entender melhor os conceitos aplicados pelo Cristianismo ao debate teológico-estético sobre Jesus Cristo, torna-se importante dar uma rápida olhada em duas perícopes da Bíblia cristã. Os versículos, que se encontram em Isaías 53,2 e o outro João 10,11, são a demonstração das duas formas de visão, já aludidas acima: o servo sofredor e o bom pastor, vejamos respectivamente.

Isaías 53,2

           Septuaginta                                   Vulgata                                Trad. Jerusalém

οὐκ ἔστιν εἶδοϛ αὐτῷ δόξα· καὶ εἴδομεν αὐτόν, καὶ οὐκ εἶχεν εἶδοϛ οὐδὲ κάλλοϛ [2]

 

[não tinha, na aparência dele mesmo, esplendor. Nem voltamos os olhos para ele mesmo, também não tinha aparência exterior nem mesmo beleza. (Trad. livre)]

non est species ei neque decor et vidimus eum et non erat aspectus et desideravimus eum [3].

 

 [não tem formosura, nem é belo e o vimos, e não tinha aparência e o desejamos. (Trad. livre)]

 

não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair nosso olhar, nem formosura capaz de nos deleitar [4].

 

    Os termos usados pelo autor no livro de Isaías tem uma conotação de aparência pessoal. A descrição que ele faz é de um homem desfigurado em sua carne, seu corpo. Isso se torna mais evidente quando se toma a Septuaginta com a expressão εἶδοϛ αὐτῷ cuja tradução é “na aparência dele mesmo[5]. Também na Vulgata se salienta, em menor intensidade, o sentido de aparência exterior com os termos species e aspectus.

   Entretanto, os termos mais relevantes para a discussão trazida aqui são κάλλοϛ e decor. Ambos designam beleza ou belo. É preciso esclarecer que a terminologia latina é variada, pois, assim como decor, species, também pode ser traduzido como belo, contudo, estes parecem estar subordinados a um outro termo de maior abrangência de significância que é pulcher, cuja significação se aproxima da categoria do Belo elaborada pela metafísica grega. Em função disso, o termo grego κάλλοϛ tem maior peso na discussão, posto que já carrega esse significado metafísico em seu cerne conceitual.

 O κάλλοϛ está ligado à filosofia platônica do Belo ideal. Para Platão, as coisas belas na imanência eram apenas representações imperfeitas daquele Belo perfeito que permanecia na luminosidade do Mundo das Ideias. Assim, podemos incutir no texto bíblico que esse homem, apresentado por Isaías, era considerado imperfeito, tanto no corpo, quanto no espírito – posto o caráter metafísico de κάλλοϛ.

  Na leitura cristã dessa perícope, o servo sofredor é o Cristo que sofre no calvário. É, portanto, a aparência sangrenta de Jesus, em suas dilacerações corporais, e seu espírito que, para os seus acusadores era imperfeito, pois não seguia as leis judaicas estabelecidas. Mas, aqui, permanece em realce, a aparência de Jesus como a forma mais profunda do sofrimento. A iconografia do servo sofredor é a imagem do horror diante da morte cruel e do sofrimento humano em geral. De fato, nisso não há beleza.

   Por muito tempo os primeiros cristãos relutaram em representar Jesus em seus sofrimentos. Primeiro, porque era um escárnio utilizado pelos pagãos para desmerecer o Cristianismo [6]; depois, o acento da fé cristã dos primeiros séculos se conservava na vida eterna e na esperança do retorno do Cristo triunfante – conforme as várias crenças milenaristas desse período. Por essa razão, o outro versículo está relacionado diretamente com a estética produzida pelos cristãos esperançosos e sedentos da vida eterna: é a imagem do Cristo pastor.

João 10,11

  Novo Testamento - grego        Vulgata            Trad. Jerusalém

Ἐγώ εἰμι ὁ ποιμὴν    ὁ καλὸϛ [7]

[Eu sou o pastor belo. (Trad. livre)]

Ego sum pastor bonus

 

Eu sou o bom pastor

 

 

        O κάλλοϛ se apresenta novamente, porém, dessa vez ele aparece com o caráter positivo. Enquanto em Is 53,2, o sujeito descrito não tinha beleza; Jesus, em Jo 10,11, afirma ser ὁ ποιμὴν ὁ καλὸϛ; portanto, não apenas o bom, mas o Belo pastor. E, já se disse, que esse belo grego tem a conotação de perfeição. Ele é o pastor perfeito do rebanho.

          Essa forma estética do Cristo Bom pastor foi uma das bases teológicas da nascente crença cristã, isso porque ela estava subordinada a fé na ressurreição e na vida no Paraíso onde a Igreja reunida – rebanho de Cristo – passaria a eternidade sob a tutela de seu Pastor perfeito. Isso se atesta pelas inúmeras figuras do Pastor na arte paleocristã. Desde as catacumbas de Calixto até o mausoléu de Gala Placídia.

Exemplo eloquente dessa base estética são as diversas imagens do Kriósphoro (Κριόφορος), esculturas que, no paganismo, representava o jovem deus Hermes carregando um cordeiro sobre os ombros para ser sacrificado; mas para os cristãos, tornou-se imagem do Cristo que leva suas ovelhas nos ombros para melhor cuidar delas. Outro aspecto a se considerar, enquanto o servo sofredor, como representante do sofrimento, é dilacerado; o Bom pastor, em sua iconografia antiga, se apresenta jovem e cheio de vigor – imagem teológica da vida eterna.

   O grego κάλλοϛ indica o acento metafísico. Contudo, na vulgata, a tradução desse termo ficou sendo Bonus [Bom] e seu significado muda de foco. Enquanto o grego se aproxima das ideias platônicas, o termo latino está mais perto das ideias estoicas de Cícero e da Romanitas do Império Romano, para o qual, assim como para alguns outros filósofos gregos anteriores a ele, o Belo está relacionado com o Bem e a boa ação. Assim sendo, mais que uma categoria estética o Bonus quer fazer aparecer o caráter ético do agir de Cristo. Trata-se, agora, da bela ação do Bom pastor com todo o cuidado em salvar cada ovelha que lhe pertence.

 Resumidamente, tem-se a seguinte situação: uma tensão entre o servo sofredor, imagem do sofrimento [pode-se dizer, da feiúra]; e a imagem do Bom Pastor, perfeito, jovem e belo. E outra tensão sobre o Belo estético, física e metafisicamente, e o belo agir ético da ação pragmática.

O Belo tensionado

 Para resolver as tensões que se colocam nesse contexto, basta aceitá-las como elas são, mas levando em conta o relaxamento delas. Dito de outro modo, o equilíbrio entre tensão e relaxamento é condição propícia para harmonizar as diferentes visões estético-teológicas. De fato, o Cristianismo Antigo soube equilibrar, teologicamente, as dimensões, aparentemente discordantes, do Servo sofredor e o Bom Pastor; a imagem do sofrimento e do desespero, com a imagem da paz e da esperança. Ao dar equilíbrio teológico, deu-lhe também ao estético e o ético.

  No estético, a tensão proporciona o choque necessário diante da beleza. Esta é a ideia de um espanto que afasta o sujeito, mas que, após uma contemplação [relaxamento] um pouco distanciada, volta-se para a beleza mais uma vez. Balthasar afirma essa tensão ao explicar que

ao belo pertence a tensão e o relaxamento dessa, e a lúdica superação dos contrários, o belo baseia seu próprio âmbito e postula para si, necessariamente, seu contrário. Para o elevado, postula o baixo; para nobre, o ridículo e grotesco, mais ainda, o terrível e o feio, a fim de assinalar o lugar que ocupa no conjunto e tirar de sua presença janelas superiores [8].

   O fascinosum e o tremendum entram em concordância e já não é possível ver um sem outro. A beleza paradisíaca, atestada pelos primeiros cristãos, na representação jovial do Pastor ressuscitado, somente tem sentido pelas dilacerações sangrentas da figura do servo sofredor. E vice-e-versa. No que diz respeito à teologia cristã, o primeiro representa a divindade – κάλλοϛ (Belo = perfeito) –, o segundo a humanidade sofrida assumida pelo Cristo – οὐ κάλλοϛ (sem beleza = imperfeita). No Cristianismo, portanto, há um equilíbrio entre as duas naturezas do Filho de Deus, expressa em sua estética.

  Considerando isso, a estética teológica toma para si o meio termo entre o imanente e o transcendente. A figura (representada) de Jesus se torna ponte para a experiência transcendental a partir da imanência dos traços materiais de uma obra de arte. Na imagem – esculpida ou pintada – não se enxerga meramente Jesus, mas contempla-se todo um conjunto de ideias teológicas que pretendem ser passadas através dela. A aparência (εἶδοϛ) contemplada, naquilo que Walter Benjamin mencionara como Aura da obra de arte, projeta o contemplante para a dimensão do belo (κάλλοϛ).

   “O olhar cristão é pleno de fé e de sua contemplação; a luz acesa nele faz brilhar também no objeto, a profundeza sobrenatural” [9]. Nessas circunstâncias, o Cristianismo Antigo aprendeu que, embora a arte não capture a beleza divina, pode ser transmitida através da experiência estética vivida teologicamente. Um mistério invisível, todavia, representado nas pinturas sobre a vida de Jesus, em sua iconografia, seja como jovem ou como sofredor, todas elas passam pela tensão da fascinante beleza e o tremendo mistério de Deus.

                                      

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[1] cf. BALTHASAR, H. U. Revelación y Belleza. in: BALTHASAR, H. U. Ensayos teológicos I: Verbum caro. Madrid, Cristandad, 1962. disponível em: https://pt.scribd.com/doc/250928775/Balthasar-Revelac-a-o-e-Beleza-Palavra-e-Sile-ncio-Verbum-Caro - acesso em 12 jan 2022.

[2] SEPTUAGINTA. disponível in: https://pt.scribd.com/document/545080573/Biblia-LXX-Septuaginta-Texto-Griego - acesso em 10 jan 2022.

[3]  BIBLIA SACRA: Iuxta vulgatam versionis. Deutsche bibelgesellschaft; Sociedade bíblica do Brasil, 2011.

[4] BÍBLIA de Jerusalém. Nov. ed. ver. ampl. 13ª impr. São Paulo, Paulus, 2019.

[5] DICIONÁRIO BÍBLICO STRONG – GREGO. James Strong. disponível in: https://pt.scribd.com/document/399404226/Dicionario-Biblico-Strong-Grego-James-Strong - acesso 12 jan 2022.

[6] Basta ver o exemplo de um pagão que, para desmerecer a fé de um cristão, desenhou um homem com cabeça de asno crucificado e ao lado um outro adorando-o, e a inscrição: “Alexamenos adora seu deus”.

[7] NOVO TESTAMENTO interlinear analítico – grego-português. São Paulo, Cultura cristã, 2008.

[8] cf. BALTHASAR, H. U. Revelación y Belleza. in: BALTHASAR, H. U. Ensayos teológicos I: Verbum caro. Madrid, Cristandad, 1962. disponível em: https://pt.scribd.com/doc/250928775/Balthasar-Revelac-a-o-e-Beleza-Palavra-e-Sile-ncio-Verbum-Caro - acesso em 12 jan 2022.

[9] BALTHASAR, H. U. A oração contemplativa. São Paulo, Paulus, 2019. (Coleção Fides Quaerens)

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