terça-feira, 16 de abril de 2024

A NECESSIDADE DA TEOLOGIA PARA A HUMANIDADE NA SUMA TEOLÓGICA DE TOMÁS DE AQUINO

 

Bruno R. Sales

Talvez uma das grandes perguntas feitas à teologia hoje é: qual a necessidade de haver estudos teológicos? Essa questão se firmou com vigor principalmente em decorrência das influências positivistas e tecnicistas, e por assim dizer, tendências epistemológicas de cunho puramente imanente. Estas influências veem a teologia como um discurso sem sentido e sem utilidade concreta para o sujeito e para a sociedade. Obviamente, consideram-na dessa maneira por desconsiderarem a base da teologia que é a fé em Deus-revelado. Essa questão não é tão nova quanto aparenta ser, na realidade, Tomás de Aquino perguntava sobre isso em sua Summa Theologia. No primeiro artigo de sua obra a primeira questão é sobre a necessidade da Teologia.

Em resposta, Tomás afirma que: “era necessário existir para a salvação do homem, além das disciplinas filosóficas que são pesquisadas pela razão humana, uma doutrina fundada na revelação divina” [1]. A perspectiva que essa afirmação apresenta é de caráter majoritariamente antropológico, isto é, a teologia não é uma ciência que serve ou é necessária apenas à Igreja [o que denotaria um caráter eclesiológico-dogmático], nem se trata de uma mera disciplina para aqueles que creem [caráter subjetivo-individual para a fé]. Ao contrário, sua necessidade é de todo homem, pois, Deus é questão de importância para toda a humanidade. De tal modo, sua referência se dá diretamente à salvação do homem, porque a teologia, longe de ser apenas um discurso sobre Deus, é a forma racional de conhecer as coisas que ultrapassam a razão humana, mas que não lhe nega oportunidade de contemplação delas. Desse modo, “era necessário para a salvação do homem que estas coisas que ultrapassam sua razão lhe fossem comunicadas por revelação divina” [2].

Tomás distingue duas teologias, porém, elas são distintas em gênero, mas não em objeto, ou seja, a objetividade da teologia é sempre a mesma, realidades supra-humanas e transcendentes, no entanto, se diferenciam por seus caminhos. A primeira é aquela que se realiza através das capacidades da Razão que o Aquinate chama de Teologia Natural, trata-se das ciências filosóficas. A segunda, por sua vez, é baseada na revelação divina, e por isso é chamada de Teologia revelada ou Doutrina Sagrada.

De acordo com o autor da Suma, esta última tem um escopo maior que a primeira, pois “mesmo com relação ao que a razão humana pode pesquisar a respeito de Deus, era preciso que o homem fosse também instruído por revelação divina” [3].  De tal modo, o Aquinate trata a teologia natural como praeambula fidei, enquanto aquela que prepara para a apreensão de realidades maiores, não obstante a teologia revelada é tratada como intelecttus fidei, isto é, aquela que busca compreender as verdades divinas reveladas pelo próprio Deus para a salvação do homem.

Seguindo isso, a teologia revelada tem como pressuposto a fé, ao contrário da teologia puramente natural que tem a razão como elemento preliminar. A fé é pressuposta porque “o que é revelado por Deus, deve-se acolher na fé” [4].

                                        

 




[1] Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, q. 1. a. 1, resp.

[2] Ib. Ibd.

[3] Ib. Ibd.

[4] Tomás de Aquino. Suma Teológica.  I, q. 1. a. 1, sol. 1.

terça-feira, 19 de março de 2024

OS CÉUS DE DANTE ALIGHIERI

 


Bruno R. Sales

            Entre 1204 e 1207, Dante Alighieri escrevia Convívio. A obra faz parte das denominadas “obras menores dantescas”, porém, a profundidade e elegância com que os assuntos dispostos pelo poeta italiano são tratados deixam claro que a titulação de menor está relacionada meramente à sua extensão – composta de apenas de 4 tratados, sendo incompleta – e sua maturidade quanto à escrita – posto se tratar de uma obra de transição da juventude para a maturidade literária de Dante.

            O convívio, ou o banquete, tem um objetivo que é novo na época em que foi escrito; ele pretendia chegar as camadas menos letradas, de forma que o Alighieri decidiu por escrevê-lo em vulgar (o dialeto popular italiano medieval) ao invés de utilizar o latim. Sua intenção era “oferecer um banquete de sabedoria, oferecido sobretudo aos pobres, aos marginalizados da cultura das letras, ao povo simples que, na Idade Média, mal sabia ler ou que gostava de acompanhar leituras interessantes feitas por outros em dias festivos ou mesmo à noite” [1].

            Nessa obra são expostos diversos assuntos, desde a sede natural humana por conhecer, até os capítulos que versam sobre o amor e seus efeitos, passando por comentários acerca da imortalidade da alma, a nobreza e a felicidade dos homens. Dentre esses conteúdos, Dante expõem sobre os céus e as inteligências que os governa, interpretando-os de modo poético. Tal interpretação, mais tarde, serviria de referência para o ordenamento cosmológico que daria em sua Comédia.

            Assim, o poeta parte da teoria ptolomaica da organização do universo, a qual estava em vigor na Idade Média, de forma que assim sintetiza:

E esta é a ordem das posições [dos céus]: o primeiro céu a ser contado é onde está a Lua; o segundo é onde está Mercúrio; o terceiro é onde está Vênus; o quarto é onde está o Sol; o quinto é o de Marte, o sexto é o de Júpiter; o sétimo é o de Saturno; o oitavo é o das Estrelas; o nono é o que não é perceptível senão pelo movimento antes mencionado, chamado por muitos de Cristalino, isto é, diáfano, ou mesmo todo transparente (Convívio, Trat. II; 3,7) [2].

            Dante coloca estes como céus móveis, de acordo com a própria teoria de Ptolomeu, ou seja, estes espaços celestes possuíam, cada um, movimento próprio e, por assim dizer, uma natureza própria. Cada céu é regido por um astro ou astros, de forma que eles são os responsáveis pelas influências de certos acontecimentos e eventos aqui na terra sejam de caráter físico ou espiritual. Entretanto, sabendo-se que esta obra se insere no medievo, estaria incompleta a teoria se não considerasse o elemento cristão que a ela se mesclou. De tal modo, se é acrescentado um décimo céu: o empíreo.

Na verdade, os católicos supõem o céu Empíreo fora de todos esses, o que é equivalente a um céu de chamas ou mesmo luminoso; e o supõem imóvel por ele conter em si, de acordo com cada uma das suas partes, aquilo que a sua matéria requer [...] Quieto e pacífico é o lugar da suma Divindade, a única a ver a si mesma por completo (Convívio, Trat. II; 3,8.10) [3].

            Este céu Empíreo estava vinculado ao motor imóvel aristotélico que foi interpretado por Tomás de Aquino como sendo Deus mesmo. Para a maioria dos pensadores desse período, Deus – motor imóvel – era a causa do movimento de rotação dos outros nove céus. Dante também concorda com isso. Contudo, sua exposição não se limita aqui, o poeta procura entender quem governa cada um desses céus, isto é, que força os governa e os mantém em movimento. Para Dante, resumindo as ideias de sua época, “os motores desses céus são substâncias separadas da matéria, isto é, Inteligências, as quais a gente comum chama de Anjos” (Convívio, Trat. II; 4,2) [4]. Com o intuito de demonstrar a qual Inteligência competia tal céu, o poeta faz uso da divisão hierárquica dos anjos feita por Gregório Magno.

Os espíritos angélicos [...] se distinguem em certas dignidades – como Tronos, Dominações, Principados, Potestades (Moralia, Lib. VI; 7,12) [5].

São nove os coros dos anjos. Pelo testemunho das Escrituras sabemos que há: anjos, arcanjos, virtudes, potestades, principados, dominações, tronos, querubins e serafins (Homilias sobre os Evangelhos, Hom. XXXIV, 7) [6].

            Partindo dessa descrição Dante escreve:

A Igreja as divide [as Inteligência] em três hierarquias, ou mesmo três principados santos ou divinos, sendo que cada hierarquia possui três ordens, de forma que ela mantém e afirma a existência de nove ordens de criaturas espirituais. A primeira é a dos Anjos, a segunda dos Arcanjos e a terceira dos Tronos; essas três ordens formam a primeira hierarquia, não em relação à nobreza nem à criação (pois as outras são mais nobres e todas foram criadas juntas), mas primeira em relação à nossa subida em sua direção. Em seguida estão as Dominações, depois as Virtudes, e em seguida os Principados, que formam a segunda hierarquia. Acima deles estão as Potestades e os Querubins, e acima de todos estão os Serafins, formando a terceira hierarquia (Convívio, Trat. II; 5,6) [7].

            Para além disso, o poeta florentino ainda relaciona os céus à ciências de sua época. Ele elenca três motivos para isso: primeiro, porque as ciências se movem em torno de seu respectivo objeto de estudo, assim como os céus se movem em si mesmos. Segundo, as ciências iluminam o intelecto, do mesmo modo que os céus iluminam, direta ou indiretamente, a face terrestre. Terceiro, e último, porque as ciências produzem no espírito humano a perfeição para qual ele tende, assim como os céus fazem com a alma, fazendo-a tender à virtude que está sempre mais alta (cf. Convívio, Trat. II; 13, 3-5). Considerando isso, as associações entre céus e ciências se apresentam da seguinte forma:

Os sete primeiros céus, do nosso ponto de vista, são os dos planetas; em seguida, depois deles, existem dois céus, todos móveis; e mais um acima de todos, quieto. Aos sete primeiros correspondem as sete ciências do trivium e do quadrivium, isto é, Gramática, Dialética, Retórica, Aritmética, Música, Geometria e Astrologia. À oitava esfera, isto é, a estrelada, correspondem a ciência natural, chamada Física, e a primeira ciência, chamada Metafísica; à nona esfera corresponde a ciência moral; e ao céu quieto corresponde a ciência divina, que é a Teologia (Convívio, Trat. II; 13,7-8)  [8].

            Tendo visto como o Alighieri tratou os céus no Convívio, convém, de igual modo, notar que eles participam da proposta que o autor colocou em todo o conteúdo da obra. Para ele, seu texto lida com os sentidos da escrita, a saber: literal, alegórico, anagógico e moral. Essa classificação dos sentidos da escrita era um chavão para os teólogos e filósofos medievais, de modo que, Dante os seguiu, porém, aplicando-os a sua própria escrita – comentando suas próprias canções – e às suas concepções filosóficas, como se poderá ver ao aplicar à temática dos céus. Para melhor compreender isso, veja-se o que próprio florentino coloca ao definir esses sentidos:

Um se chama literal... O outro se chama alegórico, e esse é o que] se esconde sob o manto dessas fábulas, sendo uma verdade velada sob uma bela mentira. [...] O terceiro sentido se chama moral, e esse é o que os comentadores devem observar atentamente nas Escrituras, para o próprio proveito e para proveito dos seus descendentes. [...] O quarto sentido se chama anagógico, isto é, um sobressentido, e esse é o que se dá quando se expõe espiritualmente uma Escritura, a qual, ainda que seja verdadeira também no sentido literal, remete à eterna glória pelas coisas que significa. (Convívio, Trat. II; 1,2-7)

            Aplicando cada sentido aos céus que Dante expôs, tem-se o seguinte: o sentido literal fica encarregado de demonstrar os céus como são em sua realidade – na época do poeta o sistema ptolomaico –; a alegoria aparece quando o poeta relaciona estes mesmos céus com as ciências de então; conquanto o sentido anagógico surge no momento no qual começa-se a pensar sobre as Inteligências que os governam. À vista disso, constrói-se a seguinte tabela:

 

 

SENTIDOS DA ESCRITA

 

Literal

Alegórico

Anagógico

 

 

 

C

É

U

S

I

Lua

Gramática

Anjos

I hierarquia

Inteligências que governam o movimento dos céus móveis

II

Mercúrio

Dialética

Arcanjos

III

Vênus

Retórica

Tronos

IV

Sol

Aritmética

Dominações

II hierarquia

V

Marte

Música

Virtudes

VI

Júpiter

Geometria

Principados

VII

Saturno

Astrologia

Potestades

III hierarquia

VIII

Estrelas fixas

Física e Metafísica

Querubins

IX

Cristalino (1° móvel)

Ciência moral

Serafins

X

Empíreo

Teologia

Deus

Poder supremo

Motor imóvel

O sentido moral não aprece na tabela porque seu domínio será demonstrado somente quando o sujeito, ao ler, adquira máximas e preceitos morais a partir de sua interpretação. Desse modo, o sentido moral já não cabe apenas ao autor, como foi com os outros, mas de forma especial ao interlocutor com quem ele fala e no qual deseja incentivar comportamentos nobres.

Dante era um homem de olhar para cima. Seus pensamentos e objetivos eram altivos, e tudo em sua obra denuncia isso. Além disso, elas aludem para a vida do ser humano que busca, sempre que pode, erguer-se até os céus, basta ver a Comédia que inicia nos mais profundos dos fossos e termina no mais alto dos céus; ou ainda Vida Nova e Convívio que atestam que o amor e a razão são as asas pelas quais o poeta alça voos até o sublime com seu dolce stil nuovo. Boccaccio, em sua biografia sobre o Alighieri, escreve que: “Ele tinha o costume de se retirar para algum lugar solitário sempre que a turba vulgar o incomodava, e ali refletir sobre qual espírito move o céu” [9].



[1] ZAMPOGNARO, Carlos E. Dante Alighieri: o poeta filósofo. São Paulo, Lafonte, 2011. p. 82

[2] ALIGHIERI, Dante. Convívio. São Paulo, Penguin-Companhia das letras, 2019. p. 146.

[3] Op. Cit. p. 147.

[4] Op. Cit. p. 149

[5] GREGÓRIO, Magno. Libros Morales 1: I-V. Madrid, Ciudad Nueva, 1998. p. 250.

[6] GREGÓRIO, Magno. Antologia. Disponível em: https://doceru.com/doc/xv0sssx - acesso em 18 mar. 2024.

[7] ALIGHIERI, Dante. Convívio. São Paulo, Penguin-Companhia das letras, 2019. p. 152-153.

[8] Op. Cit. p. 172-173.

[9] BOCCACCIO, Giovanni. Vida de Dante. São Paulo, Penguin-Companhia das letras, 2021. Ebook.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A IDENTIDADE CRISTÃ E O PAGANISMO NA ANTIGUIDADE: ENTRE DIFERENCIAÇÃO E ASSIMILAÇÃO

 

                                                                                                                                        Bruno R. Sales

Introdução

A identidade de um grupo é reconhecida quando, em processo recíproco, distintos grupos o percebe como outro. Por meio do reconhecimento de sua outridade a nova identidade alcança legitimidade dentro de um ambiente onde várias outras identidades já estão estabelecidas e outras ainda se formam. No Cristianismo antigo é possível notar isso quando, num primeiro momento, os judeus perceberam a disparidade dos ensinamentos e, por conseguinte, quando os romanos notaram os cristãos como um novo grupo religioso nascido na Judeia, diferente dos que então ali existiam.

Em termos demasiados gerais, a formação de uma identidade leva em consideração o processo de assimilação e segregação. Aplicando isso em uma realidade sociorreligiosa significa dizer que para a formação identitária de um grupo religioso se exige processualmente o avizinhamento de elementos comuns de diferentes círculos religiosos e da separação de outros como forma de diferenciação. Em palavras simples, não é possível estudar a formação de uma identidade religiosa sem o pressuposto de que elementos externos foram essenciais para isso.

            Contudo, convém dizer que tais elementos externos não são causa sui da identidade grupal, mas causa causalita. Isso significa dizer que, embora não prescindindo das influências externas, o núcleo interno é o grande motivador da construção original de um grupo. Assim, o núcleo dogmático de um círculo religioso é a causa de sua diferenciação, mas aquilo que lhe é externo, não raras vezes, fornece o suporte necessário para sua estruturação. A religião cristã não escapou a esse processo, pois muitos componentes externos ajudaram na composição e estabelecimento de sua identidade.

            Nesse texto, se tratará da forma como o Cristianismo, em seus primeiros séculos, formou sua identidade assimilando e, concomitantemente, diferenciando-se de elementos da forma religiosa pagã presentes na civilização greco-romana. Será dirigido um olhar especial para alguns aspectos rituais e literários com os quais a religião cristã teve um contato mais direto durante o período de formação de sua identidade no interior da sociedade romana dos primeiros séculos.

A religião greco-romana

            Definir as formas religiosas no mundo greco-romano não é tarefa das mais fáceis, posto que uma variedade de manifestações religiosas coexistia no seio da civilização romana.  E quando me refiro a civilita romana trato-a como “uma figura unificadora de todos os povos itálicos, do ponto de vista político, mas também em sentido religioso” [1]. Contudo, não nos deteremos nesses detalhes e, de modo didático, partiremos de uma divisão simples e generalizada das formas religiosas de então: a religião nacional e as religiões mistéricas.

            Por religião nacional entende-se aqui àquela instituição religiosa, política e cívica que fora adotada e desenvolvida no sistema imperial romano. O civismo religioso foi, a certo modo, uma herança helênica, pois na Grécia Antiga e Clássica “se é cabível de falar de “religião cívica” é porque ali o religioso está incluído no social e, reciprocamente, o social, em todos os seus níveis e na diversidade dos seus aspectos, é penetrado de ponta a ponta pelo religioso” [2]. De modo semelhante, a religião exerce essa função na vida do império romano dos primeiros séculos, posto que, sendo herdeiro da Hélade, Roma assumiu algumas das formas funcionais de sua religiosidade.

            Contudo, Roma não apenas absorveu à religiosidade cívica grega. Os romanos não eram meros imitadores. Eles criaram um sistema religioso que recebera características próprias da romanitas. De tais características a principal foi a politização.

Se em relação aos deuses a religião romana se aproximava das demais, especialmente da religião grega, em outros aspectos era bastante particular [...] era uma religião para o aqui e agora, e não para traçar um futuro de bem-aventurança eterna. Sendo assim, não era tanto uma religião espiritual, voltada à interioridade, mas antes uma religião política, voltada para a vida prática e o dia-a-dia do cidadão romano [3].

            O Estado romano determinava como se daria as relações para com os deuses. Nesse estágio a religião era, de fato, de caráter político com um objetivo cívico. Entretanto, essa religião oficial e imperial encontrou dificuldades em ser assimilada em muitas províncias. A realidade é que “a religião oficial romana foi enormemente dificultada pela indiferença das massas populares dos países subjugados que pouco se deixavam sensibilizar pelos deuses romanos” [4]. Todavia, Roma não se importava com isso desde que o domínio territorial e os benefícios advindos dele estivessem garantidos. Assim, a religião oficial evidencia sua essência de religiosidade étnica que se expande com seus adeptos/cidadãos.

            Já as experiências das religiões mistéricas (ou dos mistérios) possui um caráter diverso da religião política oficial. Elas, a seu modo, diziam respeito à vida privada do cidadão. No entanto, não afetava em forma alguma às atividades públicas destes. Essas expressões religiosas “tenderam para formas de existência e actividade, se não propriamente clandestinas, seguramente separadas, favorecendo com isto práticas religiosas com tendências particulares, típicas de uma elite, sem uma participação «popular» visível” [5]. Um exemplo dessa integração entre a vida pública e as práticas privadas na esfera religiosa pode ser observada nas características dos Mistérios de Elêusis, existente na Grécia:

Os iniciados nos Mistérios de Elêusis não formavam uma “igreja” nem uma associação secreta comparável aos mistérios da época helenística. Ao retornarem a seus lares, os mistos e os epoptas continuavam a participar dos cultos públicos. De fato, só após a morte os iniciados passavam de novo a constituir um grupo à parte, separados da massa dos não-iniciados. Segundo esse ponto de vista, podemos considerar os mistérios eleusinos, após Perístrato, um sistema religioso que complementava a religião olímpica e os cultos públicos [6], sem com isso se opor às instituições religiosas tradicionais da cidade [7].

            No entanto, mesmo sem opor-se diretamente à religião nacional, os mistéricos manifestavam sua diferença diante dela. Isso se evidenciava em seus princípios de tendências universalistas que, obviamente, ultrapassavam os limites dos códigos ético-religiosos locais. Eles possuíam um núcleo soteriológico que lhes permitia tal atitude. Alargavam-se os sentidos da experiência espiritualista – extática em algumas situações, como as bacantes dionisíacas – isso proporcionava uma relação mais ampla e extensa num sentido de vivência religiosa, mas, de igual modo, nos aspectos extra-pátrios, pois com isso as religiões mistéricas iam além de sua pátria original e se estendiam por todos os territórios do Mediterrâneo antigo.

A alma das religiões mistéricas era o segredo – eis o motivo por ter a aparência de clandestinidade – não era permitido aos adeptos revelarem os rituais a não ser àqueles que estivessem no firme propósito da iniciação mistérica. Segundo Eliade, “esses mistérios, como, aliás, os da época helenística, pressupunham iniciações que tinham de permanecer secretas” [8]. Assim, o sigilo religioso era, não apenas parte do processo, mas um pressuposto para o ingresso nos ritos iniciatórios. Essas características reforçam ainda mais a índole privada desse tipo de religiosidade.

            Vê-se daí, embora de maneira muito generalizada, um universo religioso complexo, dividido em dois grandes blocos de manifestações da religião: pública e privada. Tendo em vista que, mesmo com essa bipartição, o paganismo greco-romano era muito mais variado, não raras vezes, divergente entre as crenças e demonstrações religiosas. É nesse paradigma sociorreligioso que o Cristianismo surge e se constitui, gradualmente, como uma nova religião. 

Ritos e literatura

            O mundo greco-romano, e tudo o que ele implica, era o ambiente social no qual estava inserido o Cristianismo nascente. E, após a separação entre judeus e cristãos, essa nova religião se volta para esse mundo. Os cristãos desse período seguem um movimento prosélito, isto é, de evangelização e conversão; também de incorporação, quando se trata da assimilação de elementos dos sistemas pagãos, em especial alguns ritos e aspectos da literatura, por outro lado, também um movimento de diferenciação de outros por meio de sua fé.

Em seus primórdios a religião cristã era classificada como mistérica. Uma testemunha que fala bem da aproximação ritual, por assim dizer, é o teólogo antigo Clemente de Alexandria. Assim ele escreve:

Ó mistérios verdadeiramente santos! Ó luz diáfana! Levo tochas para contemplar Deus e os céus; torno-me santo ao ser iniciado: o Senhor é o hierofante e marca o iniciado com o sinal da cruz, conduzindo-o à luz e apresenta ao Pai aquele que creu, para que Ele o guarde eternamente [9].

            Os termos escolhidos por Clemente remetem diretamente à terminologia ritual dos Mistérios de Elêusis. Expressões como: diáfana/pura (akήratoV), contemplar (έποπτεύω) e hierofante (‘Ιεροφάντης); são tipicamente êleusinas. A pureza se refere aos mistérios (τελέται) que eram revelados de maneira gradual aos iniciados que iam se purificando no percurso da iniciação; a contemplação era o estágio final do processo de ingresso na religião; enquanto o hierofante era o próprio “sacerdote” ou guia do rito mistérico. Clemente “conhece e ama com a mesma vibração, a herança cultural dos gregos e a mensagem inovadora e renovadora da fé cristã. A sua ambição é expô-la e transmiti-la nas mesmas categorias e na mesma linguagem dos homens do seu tempo” [10]. Considerando isso se compreende o porquê associar um rito cristão a um pagão.

            Ainda relacionado à ritualística, pode-se salientar as indumentárias sacras nos primórdios. As vestes, usadas pelos cristãos para a celebração do culto, não diferiam das vestimentas dos romanos. Aliás, “as vestiduras sagradas procedem das antigas vestes civis greco-romanas. O mesmo tipo de vestes que então usava a população civil em sua vida social se utilizou também na celebração dos atos litúrgicos” [11]. Isso fica demonstrado pelas pinturas paleocristãs nas catacumbas onde se podem observar, nas representações dos cultos, os celebrantes representados usando roupas civis de sua época. Essa identificação das vestes sacras com as roupas cotidianas dos romanos perdurou até um pouco depois da Paz Constantiniana.

            Considerando agora as Letras Pagãs e sua influência, o testemunho mais eloquente é o de Basílio de Cesareia. Em sua obra Da utilidade da literatura pagã, Basílio exorta os jovens cristãos a enxergarem nos escritores pagãos “o que há de bom e útil, sempre sabendo aquilo que é preciso rejeitar” [12]. De fato, é inegável o proveito que a comunidade cristã, principalmente os apologistas, tirou da filosofia pagã; mantendo aquilo que não estava em desacordo com a doutrina cristã. Fazia-se isso sob o pretexto da semina Verbi[13].

Basílio atina principalmente para o aspecto moral da filosofia pagã, assim ele insiste que a literatura mundana de sua época auxilia nas primeiras concepções de virtudes (que são as metas morais cristãs). Assim, ele incita que os jovens vejam os bons axiomas que podem ser apreendidos das ideias correntes na sociedade em que viviam. Assim, certifica que

Quase todos escreveram sobre a sabedoria louvaram a virtude, cada um à sua maneira. Devemos, portanto, ouvi-los e incorporar seus axiomas à nossa conduta, pois só é sábio quem confirma sua filosofia pelas suas ações. E aqueles que filosofam apenas pelas palavras são nada mais do que espantalhos a impressionar pessoas ingênuas; portanto não merecem nenhum respeito [...]. Enfim, é preciso amar os discursos que contém bons axiomas [14].

Como ficou perceptível nos depoimentos de Clemente e Basílio, a comunidade cristã primitiva vivia numa linha de tensão, isto é, entre a assimilação e incorporação de elementos do paganismo de sua época, pari passu, à diferenciação e rejeição daquilo que neles não fosse parecido com a doutrina de Cristo. Portanto, tendo visto alguns exemplos de incorporações, vejamos como se dava a diferenciação e a rejeição dos elementos discordantes.

Teologia cristã: a formadora da identidade

            A teologia, dito grosseiramente, é uma ciência que dá ao ser humano a possibilidade de intelecção de Deus, de sua vontade e, se assim se pode dizer, de sua fisionomia. Desse modo, reconhecendo que o crente, isto é, o homem religioso, baseia sua vida na maneira como compreende o deus em que acredita, a ciência teológica é o instrumento pelo qual se forma a identidade da comunidade dos crentes reunidos, moldando a consciência de si perante a divindade que confessa e a sociedade em que vive.

            Os primeiros seguidores de Jesus se tornaram a comunidade cristã de fato, a partir da estruturação de sua identidade apoiada numa teologia que revisava toda a sua existência, e não somente, mas também relia toda a história da humanidade e todos os aspectos da natureza. Assim, foi por intermédio do saber teológico que os cristãos puderam trazer para si alguns elementos do paganismo, no entanto, sem transforma-se em uma religião sincrética.

A teologia não era o poder moderador, ou seja, não era ela quem decidia o que assimilar ou rejeitar. Essa função ficava a cargo do núcleo dogmático da fé cristã: a Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Cabia à ciência teológica interpretar, sob a ótica desse núcleo, as realidades não-cristãs, valorá-las e conservar àquilo que lhe fosse benéfico e não contraditório consigo mesma. Para ratificar a função do núcleo dogmático, um bom exemplo é Tertuliano de Cartago.

            Ao escrever para os pagãos, Tertuliano os exortava a não acreditarem nos crimes que eram imputados aos cristãos [15] e a compreenderem a grandeza da religião cristã. Como reforço à sua apologia o escritor eclesiástico fez uso do núcleo dogmático para mostrar que o cristianismo estava inserido – quer queira, quer não – no seio da religião pagã e que superava em relação aos ensinamentos e as práticas. Desse modo, valendo-se do símbolo da cruz, o sinal cristão por excelência, ele afirma que nas tradições romanas já está latente a cruz de Cristo. Assim escreve

A essência da cruz consiste que é um símbolo feito de madeira. Também vós adorais objetos desta mesma matéria com uma imagem. Embora o vosso seja como uma figura humana, também o nosso tem uma própria. Não importa que figura tenhas, desde que seja da mesma essência, da mesma forma, contanto que seja o corpo de deus. Porque se a diferença consiste nisto, quanto se distingue da árvore da cruz, a Palas Ática ou a Ceres Faria que é representada com bastão áspero sem forma e com uma simples vara de lenha informe? Uma parte da cruz, e talvez a maior, é todo o poste inteiro que se fixa de modo reto e de pé [16].

Tertuliano, apesar de uma associação um tanto forçosa, para não dizer de argumentação frágil; transfigura o símbolo pagão do bastão de poder atribuído aos deuses como sendo uma parte da cruz. Afirmando que os cristãos são aqueles que portam a cruz inteira, ele desenvolve também a ideia de que os pagãos transportam, de maneira inconsciente, a cruz completa. O escritor propõe que os deuses (aqui entendidos como os ídolos, as estátuas) têm sua origem na própria cruz.

Pois vós [pagãos] ignorais que a origem de vossos deuses procede do patíbulo. Com efeito, toda imagem, seja esculpida em madeira ou pedra […] é necessário que a precedam as mãos do escultor. A modelação requer com anterioridade a árvore da cruz, porque ela está também em nosso corpo por meio de uma implícita e secreta linha da cruz, pois a cabeça sobressai-se, a coluna vertebral é reta e a cruz dos ombros [as atravessa]: se se põe um homem com os braços estendidos, se obtêm uma imagem da cruz. Sobrepondo à argila este esboço […] o esboço passará ao mármore […] De certo modo, a cruz passa ao deus por meio da argila [17].

O núcleo dogmático cristão é o que legitima a atitude teológica de Tertuliano, pois, como teólogo cristão, ele enxerga o mundo e tudo o que há nele sob a ótica de sua fé. Como apologista, ele ressignifica os símbolos para demonstrar que Jesus Cristo e sua obra salvífica imiscuíram-se em todas as realidades do mundo conhecido, tudo isso sob a noção de Revelação Divina. Isso acontece porque “a revelação trazida pela fé não destruiu os significados pré-cristãos dos símbolos, apenas adicionou-lhes um novo valor” [18]. De tal modo, o olhar do fiel cristão se detinha apenas no novo significado, eclipsando o antigo. Doravante, o que importava era a teosemântica cristã.

Considerações finais

A simbologia cristã antiga não foi inteiramente nova no sentido formal, mas sua novidade está relacionada ao sentido semântico, isto é, o significado posto no signo. Isso aconteceu porque, inserido no paradigma sociorreligioso greco-romano e com adeptos vindos do paganismo, os cristãos não podiam prescindir dessas realidades. Não obstante isso, aspectos rituais e literários foram também assimilados e transfigurados em cristãos. A possibilidade para isso está relacionada ao núcleo dogmático do cristianismo: a Revelação dada pela vida de Jesus Cristo.

Pela Revelação a religião cristã teve a possibilidade de anular, estender ou dar novos significados a sinais, ritos e elementos pagãos. A peça chave para isso foi a sistematização de seu pensamento e visão de mundo por intermédio da teologia. A identidade cristã só poderia ser verdadeiramente formada sobre a tutela de uma teologia bem estruturada. De outro modo, teria resultado em apenas um sistema filosófico – ou mesmo ideológico – a mais na antiguidade.

O Cristianismo pode ser considerado um “mestiço”, por assim dizer, e isso não é de forma alguma motivo de revolta ou de desconsideração a ele. Foi graças à inculturação religiosa do cristianismo antigo que o sentido universal da mensagem cristã ganhou destaque e espaço nas terras mais longínquas do Império Romano e mesmo em terras estrangeiras, alheias a Roma. Diante disso, não existe um Cristianismo puro e simples, mas complexo e composto.



[1] ADRIANI, Maurilio. História das religiões. Lisboa, Edições 70, 1988. p. 71 (Perspectivas do homem)

[2] VERNANT, Jean-Pierre.  Mito e religião na Grécia antiga. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2006. p. 7-8.

[3] RUPPENTHAL NETO, Willibaldo. As religiões no tempo de Jesus. São Paulo, Fonte editorial, 2019. p. 136 (Coleção Cristianismo primitivo em debate)

[4] OHLWEILER, Otto Alcides. A religião e a filosofia no mundo greco-romano. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1990. p. 177 (Série Novas Perspectivas; 33)

[5] ADRIANI, Maurilio. História das religiões. Lisboa, Edições 70, 1988. p. 107 (Perspectivas do homem)

[6] Em Roma, a princípio, essa forma de religiosidade sofreu repressões políticas, pois, segundo Charles N. COCHRANE (2012, p. 60), “eles pregavam um evangelho de salvação puramente individual ou de salvação em ‘sociedade’ encarada como distinta e independente de formas políticas. Era com as atividades dessas seitas que os romanos estavam mais familiarizados; e, por fracamente que eles conseguissem apreender suas doutrinas, sabiam o suficiente para perceber que o seu propósito não era meramente o de enfraquecer em geral o motivo da ação comunal, mas ameaçar em particular a virtude especificamente romana do patriotismo”. (Cristianismo e cultura clássica: um estudo das ideias e da ação de Augusto a Agostinho. Rio de Janeiro, Topbooks, 2012).

[7] ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas (I): da Idade da pedra aos mistérios de Elêusis. Rio de Janeiro, Zahar, 2010. p. 285.

[8] Ibidem. p. 286.

[9] CLEMENTE de Alexandria.  Exortação aos gregos. [trad. Rita de Cássia Codá dos Santos] São Paulo, Editora É realizações, 2013. p. 211. (Coleção Medievalia)

[10] BRAGANÇA, Joaquim O. Tipologia arcaica do Baptismo. In: Liturgia e espiritualidade na Idade Média. Lisboa, Universidade Católica Editora, 2008. p. 313-314.

[11] RIGHETTI, Mario. Historia de la liturgia (I): Introducción general. Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2013. p. 967.

[12] BASÍLIO de Cesareia. Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã. [trad. Diogo Chiuso], Campinas-SP, Ecclesiae, 2012. p. 32

[13] Esse termo designa a ideia cristã elaborada por Justino de Roma de que na filosofia pagã havia lampejos do Verbo de Deus (Jesus Cristo). Para ele, “o Logos (Verbo) total (‘Ο πας λογός) aparece em Cristo, ao passo que aqueles filósofos (pagãos) possuíram-no apenas germinalmente ou em parte (’έμφυτα σπέρματα [μέρη] τοῡ λογοῡ)” (BOHEHNER, Philotheus; GILSON,Etienne. História da filosofia cristã. Petrópolis-RJ, Vozes, 2004. p. 29).

[14] Ibidem. p. 42-43

[15] Os cristãos sofriam acusações de incesto, orgia e antropofagia por parte dos cidadãos romanos não-cristãos.

[16] TERTULIANO. A los paganos/ El testimonio del alma. Madrid, Editorial Ciudad Nueva, 2004. p. 78-79. (Biblioteca de Patrística 63)

[17] Ibidem. p. 80

[18] ELIADE, Mircea O sagrado e o profano. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2010. p.115 (Biblioteca do pensamento moderno)

 

A NECESSIDADE DA TEOLOGIA PARA A HUMANIDADE NA SUMA TEOLÓGICA DE TOMÁS DE AQUINO

  Bruno R. Sales Talvez uma das grandes perguntas feitas à teologia hoje é: qual a necessidade de haver estudos teológicos? Essa questão...