Bruno R. Sales
As diversas culturas se fundamentam
em costumes, e estes são os lugares familiares de regras de ação e de condutas
que as orientam. Estes costumes, que podemos aludir à palavra grega ethós,
quando relacionados com aspectos específicos como região, época ou povo
particular, denomina-se moral. Em função dessas especificidades existem
diversas “morais”. Contudo, há um fundamento que é comum a todas elas, isto é,
existe algo que ultrapassa os costumes particulares e são, evidentemente,
universais, sendo o alicerce e modelo de todas as morais, a isto chama-se ética.
A responsabilidade da ética é trazer aos sujeitos critérios sob os quais eles
possam julgar, discernir e escolher entre o que é o Bem e o Mal. Por isso, ela
é formada por princípios imutáveis que são considerados em sua universalidade
diante do gênero humano.
No desenrolar da história da
filosofia a ética foi uma preocupação constante. Os filósofos sentiram a necessidade
de interrogar sobre quais tipos de comportamento constituíam uma elevação do
espírito de humanidade, isto é, qual modus vivendi era o adequado para
se realizar como ser humano. No período
homérico da Grécia Antiga, temos a ideia de areté, as virtudes heroicas
e nobres. Tratava-se de um comportamento que se fundamentava nos feitos
heroicos e guerreiros de certas figuras que serviam como arquétipo moral para a
aristocracia. Tem-se como testemunha desse conceito as obras de Homero: Ilíada
e Odisseia.
Tal
conceito – areté – é usado pelo poeta grego “em seu mais amplo sentido,
não somente para designar a excelência humana, mas também para mostrar a
superioridade dos seres humanos” [1]. Os valores da heroicidade
eram sintetizados nas ações de coragem e distinção do homem comum, este sendo
considerado de duas formas, como um sujeito de classe social inferior
(portanto, não aristocrático) e outro como um sujeito fraco (entendido como covarde)
em suas atitudes. Não à toa, em muitas ocasiões da narrativa da Ilíada vê-se
grandes guerreiros exortando seus companheiros de armas e a reprovação às
atitudes de covardia. Para exemplificar, vê-se a exortação de Heitor ao Tidida
Diomedes, quando este virou seu cavalo para voltar à cidade de Tróia e fugir da
guerra (Ilíada, Cant. VIII, 160-174):
[...] “Tidida, apreço te concediam
os Dânaos com lugar de honra... mas, agora te vilipendiarão. Afinal, fostes uma
mulher. Foge lá, menina medrosa”.
[...]
Aos troianos bradou Heitor,
vociferando bem alto:
“Sede homens, amigos,
e lembrai-vos da bravura animosa!” [2].
O modelo ético de Homero se baseia
na aspiração de proezas nas quais o perigo é esquecido e a própria vida do
indivíduo é posta de lado, não somente como ato para prova de coragem, mas como
busca de feitos em prol de um bem maior. Isso evidencia que “apesar do
predomínio do significado bélico, há, em Homero, um sentido “ético” mais geral.
[...] que designa ao homem de qualidade, para o qual, na vida privada ou na
guerra, regem determinadas normas de condutas” [3]. Noutros termos, o homem
ético diferencia-se dos demais, por seguir em sua conduta normas de constância
no bem expressas nos atos corajosos.
Posteriormente, Platão e Aristóteles
formularam um sistema coeso e bem estruturado sobre o agir ético. Tomando o
sistema aristotélico, o Estagirita não rejeita os ideais homéricos, porém, os
reformula e lhes dá maior profundidade. Em sua Ética a Nicômaco, o
filósofo não vai apenas distinguir entre ações nobres ou não, mas vai analisar
o comportamento humano a partir de sua finalidade e fonte. De modo tal, que o leva
a partir da afirmação de que
Admite-se geralmente
que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em
mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo
a que todas as coisas tendem [4].
O fim de todas as ações do homem é o
Bem, porém, para Aristóteles esse Bem está relacionado com a felicidade (eudamonia).
Esta, por sua vez, é classifica em duas instâncias: a felicidade própria,
realizada nas ações particulares do bom agir; e a dos outros, traduzida na
política, como uma ação comunitária na qual todos os homens procuram realizar o
Bem supremo, isto é, uma felicidade geral; sendo esta última a mais desejada,
pois, segundo o filósofo “procurar o bem de uma
pessoa é algo desejável, porém é mais formoso e divino consegui-lo para um povo
e para cidades” [5].
Até aqui Aristóteles segue em certa
sintonia com a areté homérica, porém, ele aprofunda o assunto quando
pergunta sobre a fonte da qual surge a vontade de agir de forma boa e de onde
brota o sentimento de comunidade que tende para a felicidade conjunta. Ora, não
é de se espantar que ele encarrega a razão dessa tarefa.
Se, então, a função
própria do homem é uma atividade da alma segundo a razão, ou que implica a
razão [...] dizemos que a função do homem é uma certa vida, e esta é uma
atividade da alma e ações razoáveis, e na vida do homem bom estas mesmas coisas
de modo bom e formoso, e cada um realiza segundo sua própria virtude [6].
Grosso modo, a ética aristotélica visa o
aperfeiçoamento individual e comunitário e para tanto, estabelece a razão como
meio de realização desse processo. O homem se diferencia dos demais seres por
sua racionalidade e, se ele quer agir de forma boa e feliz, deve usá-la para
tornar-se melhor a cada nova ação.
Prosseguindo nessa mesma via, na
Idade Média vemos a síntese do pensamento grego com a fé cristã. Nesse período,
a ética se baseia no seguimento aos mandamentos de Deus e na observância de sua
vontade. Contudo, para alguns, não se tratava de um seguimento cego, mas
deveria também passar pelo crivo do intelecto, posto que nele reside o que há
de superior no ser humano como ente criado, por Deus, como racional e livre.
Tomás de Aquino, por exemplo, estabelece sua ética na vontade humana como uma
potência do intelecto que, como o Estagirita, tende naturalmente para o Bem
(Deus mesmo) e necessita da razão para purificá-la pelos hábitos que se tornam
virtudes (cf. Suma Teológica, I, Q. 80-82; I-II, Q. 49-67).
Na Modernidade, por sua vez, Kant
foi um dos grandes expoentes da reflexão sobre a ética. O filósofo alemão,
inserido no contexto iluminista, determina os comportamentos humanos dentro de
parâmetros que se fixem na razão prática, isto é, numa racionalidade na qual
“se ocupa com os fundamentos de determinação da vontade, que é uma faculdade ou
de produzir objetos correspondentes às representações ou determinar a si mesma”
[7]. A ideia de razão
reguladora da vontade parte da noção de liberdade. Dessa maneira, o homem livre
pode regular sua vontade de acordo com certos princípios racionais que, a
priori, ele tem de modo geral como dever pelo dever – imperativo categórico
– mas também através de leis reguladoras particulares a posteriori, isto
é, máximas de condutas.
Entretanto, o sistema ético kantiano
possui diferenças significativas acerca das motivações do indivíduo para agir
bem. As motivações corretas devem estar de acordo com o princípio de autonomia
da vontade, ou seja, com a faculdade do homem de determinar-se a si mesmo; ao
invés de procurar uma motivação heterônoma e, portanto, externo a ele.
Autonomia da vontade
é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei
(independentemente da natureza dos objectos do querer). O princípio da
autonomia é, portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha
estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal [8].
Em função desse conceito de
autonomia, a ética kantiana se desmembra da ideia eudaimônica grega e da
tendência humana para Deus como Bem Personificado, vista no medievo, e se fixa
na moralidade deontológica. Assim, a felicidade deixa de ser o fim buscado do
agir bem, para tornar-se uma consequência natural dele. O que vai tornar-se
importante é a intenção da ação ética, se for realizada por uma boa vontade,
então o homem tornar-se digno e a beatitude lhe alcança. Não somente isso, mas
também a felicidade da comunidade humana como um todo dependerá dos puros
sentimentos de agir bem pelo fato disso ser bom.
[1] JEAGER, Werner. Paideia:
los ideaes de la cultura griega. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica,
1985. p. 21
[2] HOMERO. Ilíada. São Paulo,
Penguin classics/Companhia das letras, 2013.
p. 275.
[3] JEAGER, Werner. Paideia:
los ideaes de la cultura griega. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica,
1985. p. 23.
[4] ARISTÓTELES. Ética nicomáquea.
Madrid, Planeta deAgostini, 1997. p. 11
[5] Ibidem. p. 13
[6] Ibidem, p. 23-24.
[7] KANT, Immanuel. Crítica da
razão prática. Petrópolis-RJ, Vozes; Bragança Paulista, São Paulo; Editora
Universitária, São Francisco, 2016. (Pensamento Humano) p. 15.
[8] KANT, Immanuel. Fundamentação
da metafísica dos costumes. Lisboa, Edições 70, 2007. p. 85
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