terça-feira, 21 de novembro de 2023

ALINHAVADO SOBRE A ÉTICA: DE HOMERO A KANT

 


Bruno R. Sales

            As diversas culturas se fundamentam em costumes, e estes são os lugares familiares de regras de ação e de condutas que as orientam. Estes costumes, que podemos aludir à palavra grega ethós, quando relacionados com aspectos específicos como região, época ou povo particular, denomina-se moral. Em função dessas especificidades existem diversas “morais”. Contudo, há um fundamento que é comum a todas elas, isto é, existe algo que ultrapassa os costumes particulares e são, evidentemente, universais, sendo o alicerce e modelo de todas as morais, a isto chama-se ética. A responsabilidade da ética é trazer aos sujeitos critérios sob os quais eles possam julgar, discernir e escolher entre o que é o Bem e o Mal. Por isso, ela é formada por princípios imutáveis que são considerados em sua universalidade diante do gênero humano.

            No desenrolar da história da filosofia a ética foi uma preocupação constante. Os filósofos sentiram a necessidade de interrogar sobre quais tipos de comportamento constituíam uma elevação do espírito de humanidade, isto é, qual modus vivendi era o adequado para se realizar como ser humano.  No período homérico da Grécia Antiga, temos a ideia de areté, as virtudes heroicas e nobres. Tratava-se de um comportamento que se fundamentava nos feitos heroicos e guerreiros de certas figuras que serviam como arquétipo moral para a aristocracia. Tem-se como testemunha desse conceito as obras de Homero: Ilíada e Odisseia.

Tal conceito – areté – é usado pelo poeta grego “em seu mais amplo sentido, não somente para designar a excelência humana, mas também para mostrar a superioridade dos seres humanos” [1]. Os valores da heroicidade eram sintetizados nas ações de coragem e distinção do homem comum, este sendo considerado de duas formas, como um sujeito de classe social inferior (portanto, não aristocrático) e outro como um sujeito fraco (entendido como covarde) em suas atitudes. Não à toa, em muitas ocasiões da narrativa da Ilíada vê-se grandes guerreiros exortando seus companheiros de armas e a reprovação às atitudes de covardia. Para exemplificar, vê-se a exortação de Heitor ao Tidida Diomedes, quando este virou seu cavalo para voltar à cidade de Tróia e fugir da guerra (Ilíada, Cant. VIII, 160-174):

[...] “Tidida, apreço te concediam os Dânaos com lugar de honra... mas, agora te vilipendiarão. Afinal, fostes uma mulher. Foge lá, menina medrosa”.

[...]

Aos troianos bradou Heitor, vociferando bem alto:

“Sede homens, amigos, e lembrai-vos da bravura animosa!” [2].

            O modelo ético de Homero se baseia na aspiração de proezas nas quais o perigo é esquecido e a própria vida do indivíduo é posta de lado, não somente como ato para prova de coragem, mas como busca de feitos em prol de um bem maior. Isso evidencia que “apesar do predomínio do significado bélico, há, em Homero, um sentido “ético” mais geral. [...] que designa ao homem de qualidade, para o qual, na vida privada ou na guerra, regem determinadas normas de condutas” [3]. Noutros termos, o homem ético diferencia-se dos demais, por seguir em sua conduta normas de constância no bem expressas nos atos corajosos.

            Posteriormente, Platão e Aristóteles formularam um sistema coeso e bem estruturado sobre o agir ético. Tomando o sistema aristotélico, o Estagirita não rejeita os ideais homéricos, porém, os reformula e lhes dá maior profundidade. Em sua Ética a Nicômaco, o filósofo não vai apenas distinguir entre ações nobres ou não, mas vai analisar o comportamento humano a partir de sua finalidade e fonte. De modo tal, que o leva a partir da afirmação de que

Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem [4].

            O fim de todas as ações do homem é o Bem, porém, para Aristóteles esse Bem está relacionado com a felicidade (eudamonia). Esta, por sua vez, é classifica em duas instâncias: a felicidade própria, realizada nas ações particulares do bom agir; e a dos outros, traduzida na política, como uma ação comunitária na qual todos os homens procuram realizar o Bem supremo, isto é, uma felicidade geral; sendo esta última a mais desejada, pois, segundo o filósofo procurar o bem de uma pessoa é algo desejável, porém é mais formoso e divino consegui-lo para um povo e para cidades” [5].

            Até aqui Aristóteles segue em certa sintonia com a areté homérica, porém, ele aprofunda o assunto quando pergunta sobre a fonte da qual surge a vontade de agir de forma boa e de onde brota o sentimento de comunidade que tende para a felicidade conjunta. Ora, não é de se espantar que ele encarrega a razão dessa tarefa.

Se, então, a função própria do homem é uma atividade da alma segundo a razão, ou que implica a razão [...] dizemos que a função do homem é uma certa vida, e esta é uma atividade da alma e ações razoáveis, e na vida do homem bom estas mesmas coisas de modo bom e formoso, e cada um realiza segundo sua própria virtude [6].

Grosso modo, a ética aristotélica visa o aperfeiçoamento individual e comunitário e para tanto, estabelece a razão como meio de realização desse processo. O homem se diferencia dos demais seres por sua racionalidade e, se ele quer agir de forma boa e feliz, deve usá-la para tornar-se melhor a cada nova ação.

            Prosseguindo nessa mesma via, na Idade Média vemos a síntese do pensamento grego com a fé cristã. Nesse período, a ética se baseia no seguimento aos mandamentos de Deus e na observância de sua vontade. Contudo, para alguns, não se tratava de um seguimento cego, mas deveria também passar pelo crivo do intelecto, posto que nele reside o que há de superior no ser humano como ente criado, por Deus, como racional e livre. Tomás de Aquino, por exemplo, estabelece sua ética na vontade humana como uma potência do intelecto que, como o Estagirita, tende naturalmente para o Bem (Deus mesmo) e necessita da razão para purificá-la pelos hábitos que se tornam virtudes (cf. Suma Teológica, I, Q. 80-82; I-II, Q. 49-67).

            Na Modernidade, por sua vez, Kant foi um dos grandes expoentes da reflexão sobre a ética. O filósofo alemão, inserido no contexto iluminista, determina os comportamentos humanos dentro de parâmetros que se fixem na razão prática, isto é, numa racionalidade na qual “se ocupa com os fundamentos de determinação da vontade, que é uma faculdade ou de produzir objetos correspondentes às representações ou determinar a si mesma” [7]. A ideia de razão reguladora da vontade parte da noção de liberdade. Dessa maneira, o homem livre pode regular sua vontade de acordo com certos princípios racionais que, a priori, ele tem de modo geral como dever pelo dever – imperativo categórico – mas também através de leis reguladoras particulares a posteriori, isto é, máximas de condutas.

            Entretanto, o sistema ético kantiano possui diferenças significativas acerca das motivações do indivíduo para agir bem. As motivações corretas devem estar de acordo com o princípio de autonomia da vontade, ou seja, com a faculdade do homem de determinar-se a si mesmo; ao invés de procurar uma motivação heterônoma e, portanto, externo a ele.

Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objectos do querer). O princípio da autonomia é, portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal [8].

            Em função desse conceito de autonomia, a ética kantiana se desmembra da ideia eudaimônica grega e da tendência humana para Deus como Bem Personificado, vista no medievo, e se fixa na moralidade deontológica. Assim, a felicidade deixa de ser o fim buscado do agir bem, para tornar-se uma consequência natural dele. O que vai tornar-se importante é a intenção da ação ética, se for realizada por uma boa vontade, então o homem tornar-se digno e a beatitude lhe alcança. Não somente isso, mas também a felicidade da comunidade humana como um todo dependerá dos puros sentimentos de agir bem pelo fato disso ser bom.



[1] JEAGER, Werner. Paideia: los ideaes de la cultura griega. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1985. p. 21

[2] HOMERO. Ilíada. São Paulo, Penguin classics/Companhia das letras, 2013.  p. 275.

[3] JEAGER, Werner. Paideia: los ideaes de la cultura griega. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1985. p. 23.

[4] ARISTÓTELES. Ética nicomáquea. Madrid, Planeta deAgostini, 1997. p. 11

[5] Ibidem. p. 13

[6] Ibidem, p. 23-24.

[7] KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Petrópolis-RJ, Vozes; Bragança Paulista, São Paulo; Editora Universitária, São Francisco, 2016. (Pensamento Humano) p. 15.

[8] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa, Edições 70, 2007. p. 85

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A NECESSIDADE DA TEOLOGIA PARA A HUMANIDADE NA SUMA TEOLÓGICA DE TOMÁS DE AQUINO

  Bruno R. Sales Talvez uma das grandes perguntas feitas à teologia hoje é: qual a necessidade de haver estudos teológicos? Essa questão...