segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

TRANSIÇÃO DA MITOLOGIA À FILOSOFIA: A RACIONALIZAÇÃO DOS MITOS

 


                                                                                                                   Bruno R. Sales

Os motivos pelos quais o nascimento da filosofia deu-se na Grécia é objeto de discussão há tempos, pois, muitas outras civilizações estavam avançadas para seu contexto temporal, como o Egito e a Babilônia, por exemplo. Alguns consideram que as razões desse surgimento na Grécia foram a abertura e capacidade sintética do pensamento grego de então, de modo especial, dos pensadores jônicos. A Jônia era, até então, uma capital com grande fluxo comercial e intelectual que possuía fluidez em sua constituição cultural, isto é, diferentemente do Egito e Babilônia onde não se questionavam as tradições e mitos [não no sentido de revolta, mas busca curiosa pelas origens sensíveis delas], os pensadores da escola jônica, considerados como primeiros filósofos – Tales, Anaximandro e Anaxímenes – tiveram liberdade e ousadia para questionar sobre as respostas que os poetas haviam dado às perguntas da época, e propor eles mesmos outras que em seu cerne procuravam fugir das fantásticas narrativas míticas e fundava-se numa razão argumentativa firmada naquilo que todos podiam averiguar com seus sentidos.

            Existem duas vertentes que procuram explicar a passagem do mito ao lógos: aquela que comumente tem-se como “milagre grego” e a hipótese do desenvolvimento a partir da religião. A respeito da ideia do milagre grego traduz-se na hipótese de que a filosofia surgiu como um fato original da Grécia, de modo que, nenhum outro povo teve essa originalidade de pensamento e método de pesquisa ou, até mesmo, vivência. Tem-se como principal representante dessa hipótese a obra de John Burnet, A aurora da Filosofia grega (1892), na qual o autor apresenta a filosofia como ciência, no sentido de racionalidade sem recorrência à fantasia como justificação, abalizada pelo empirismo ou racionalismo, ainda, argumentando que não seria possível defender uma origem extra-grega à filosofia, de igual modo, não haveria como afirmar que esta origem venha dos mitos, mesmo que sejam gregos. Assim, segundo Burnet, “os gregos não tomaram sua filosofia nem sua ciência emprestadas do Oriente” (§ XII) [1] e complementa afirmando que

Houvera uma ruptura completa com a antiga religião egéia e que o politeísmo olímpico nunca teve uma influência sólida sobre a mente dos jônios. É, pois, um grande equívoco buscar as origens da ciência jônica em qualquer tipo de ideia mitológica (§ IX) [2].

            Isso significa que, se se está de acordo com Burnet, os gregos foram totalmente originais em sua forma de pensar, mas, essa originalidade não está atrelada a nenhum aspecto anterior – mito ou intercâmbio de culturas – mas se fundamenta numa exclusividade absoluta da Grécia que proporcionou um ambiente adequado para que tal ocorresse.

Em contraponto a essa visão da origem da filosofia, tem-se a hipótese de que ela foi derivando da religião, isto é, havia num primeiro momento uma grande proximidade – estrutural, temática, estilística etc. – entre o mito e filosofia que aos poucos foi se perdendo, permitindo que o pensamento filosófico tornasse independente, criando formas e metodologias tão próprias que o caráter religioso, quando não sumia totalmente, era eclipsado pela argumentação puramente racionalizada.  A obra Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego (1952) de F. M. Cornford, representa a síntese originária dessa hipótese.

Para Cornford, as relações entre as crenças religiosas e o pensamento filosófico nascente são evidentes e negá-las é restringir o campo de estudo da filosofia antiga, diminuindo a riqueza e a complexidade do pensamento dos filósofos desse período. Segundo ele, o estudo da origem da filosofia tida como rejeição ao mito e as crenças religiosas fazem parte de um método afetado pelo positivismo do séc. XIX e dos conflitos entre fé e razão que alardearam essa época da história. Conforme ele escreve:

O homem sábio, quer lhe deem o título mais antigo de sophiste, ou o mais modesto de amigo da sabedoria, ainda era visto nos séculos V e IV como um dos tipos diferenciados que tinham emergido do complexo profeta-poeta-sábio [ou seja, do ambiente religioso]. As suas afinidades têm sido menosprezadas pelos historiadores modernos da filosofia, obcecados pelo conflito entre religião e ciência do século XIX. Têm partido do princípio de que o racionalismo esclarecido está necessariamente em oposição às crenças e práticas supersticiosas de uma religião hoje obsoleta, ou de que um filósofo cujas preocupações religiosas não podem ser negadas tinha forçosamente de ter a sua religião e a sua ciência em compartimentos tão estanques que elas nunca se misturassem nem entrassem em conflito [3].

            Além de sua crítica tenaz a Burnet e cia, o autor estabelece para as gerações de estudiosos que lhe sucedeu o liame entre a religiosidade grega e a origem da filosofia, permitindo que se percebesse o nascimento da filosofia, não como um milagroso esclarecimento no qual a razão filosófica aparenta ter surgido ex nihilo, mas como um processo que durou séculos – de modo rasteiro do século VII a. C. ao III a. C. –, a saber, a gradual racionalização dos mitos gregos. Esse movimento passou por etapas nas quais a filosofia foi ganhando espaço, tornando-se robusta até que, por fim, o mito fosse esvaziado e o saber filosófico se estabelecesse em definitivo.

Da razão mitológica à razão filosófica                                                                                         

Concordando que a filosofia não surgiu milagrosamente na Grécia, mas que se trata do resultado de um processo lento e contínuo de racionalização de alguns aspectos religiosos, que foi impulsionado por um ambiente onde grandes transformações políticas e sociais permitiram a liberdade de pensamento, modificando também a forma de transmissão de tal; tem-se apenas duas questões que precisam de respostas: quais semelhanças tem a filosofia com a mitologia? E qual sua novidade?

No que se refere às semelhanças, Cornford oferece o esquema que as salienta, de modo que, muito mais que duas visões de mundo distintas, razão mitológica e razão filosófica se configurem em dois níveis distintos de abstração da realidade. Assim, segundo Cornford, ambas possuem:

1 – No princípio uma unidade original, um estado indistinto ou de fusão, no qual os fatores que mais tarde se irão diferenciar estão ainda amalgamados;


2 – Desta unidade surgem, por separação, pares de coisas ou ‘forças’ opostas; o primeiro constituí pelo Quente e pelo Frio, seguindo-lhe o úmido e o Seco. Esta separação leva finalmente à disposição das grandes massas elementares que constituem a ordem do mundo, e à formação dos corpos celestes.

3 – Os opostos atuam uns sobre os outros ou formam novas combinações nos fenômenos meteóricos e na produção de coisas vivas individuais – as plantas e aos animais [4].

Nota-se, a partir disso, que as similitudes são especialmente de ordem estrutural. Os primeiros filósofos fizeram uso de estruturas pertencentes ao gênero mitológico para expor suas ideias inovadoras. Isso fica ainda mais evidente quando se observa que grande parte dos pré-socráticos escreveram em forma de poemas cosmogônicos e de caráter quase religioso – a exemplo do poema do Ser de Parmênides ou do Lógos de Heráclito. Entretanto, as semelhanças não se limitam aqui, também a terminologia permanece. Os filósofos continuam falando sobre Κάος, Γαῖ, Οὐρανός e Ἒρος; porém, estes termos não possuem o mesmo valor de significado.

Os termos e a estrutura permanecem porque ambos tratavam das fórmulas vigentes da época. É difícil imaginar, por exemplo, que algum filósofo atual decida escrever suas obras em forma de poemas e com termos os quais os interlocutores não tenham certa familiaridade ou nem ao menos possam compreender. Assim, aconteceu com os pré-socráticos, eles escreveram usando uma terminologia e uma estruturação que se assemelhava aos mitos, porém, não estava falando de deuses ou heróis, essas personagens foram despojadas do antropomorfismo e do ritualismo de então, para tornarem-se forças cósmicas responsáveis pela geração e corrupção dos seres.

De acordo com Vernant, “a inovação mental consiste no fato de essas forças serem estritamente delimitadas e abstratamente concebidas: limitam-se a produzir um efeito físico determinado, e este efeito é uma qualidade geral abstrata” [5]. O mesmo autor ainda explica essa transformação alegando que os mitos eram narrativas, portanto, sua função consistia em responder, através de histórias, as realidades das coisas existentes (τά ὂντα); a filosofia inova quando, ao invés de partir de uma narrativa, formula um problema para tentar resolvê-lo. Para os primeiros filósofos, o mito tinha uma resolução, porém, não havia planteado o problema de modo adequado. Werner Jaeger complementa, afirmando que essa atitude é “uma forma nova e radical de pensar racional, que já não tira seu conteúdo da tradição mítica, nem a rigor de nenhuma tradição, mas que toma por ponto de partida as realidades dadas na experiência humana, ‘as coisas existentes’ [6]. Assim, o Lógos (λόγος) do mito, concebido como palavra apresentada em forma narrada, cede seu lugar para o Lógos filosófico que é apresentado na forma de uma lógica argumentativa nascente.



[1] BURNET, Jonh. A aurora da filosofia grega. Rio de Janeiro, Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006. p. 35.

[2] Op. Cit. p. 29.

[3] CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1989. p. 174.

[4] Op. Cit. p. 308-309.

[5] VERNANT, J. P. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. p. 449.

[6] WERNER, Jaeger. La teologia de los primeiros filósofos griegos. México, Fondo de Cultura Económica, 1992. p. 24.

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