quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

O TEÓLOGO E A TEOLOGIA NOS DISCURSOS 27 E 28 DE GREGÓRIO NAZIANZENO

 

Bruno R. Sales

    Durante seus primeiros séculos, o Cristianismo se viu diante de um desafio, defender sua fé dos ataques infames vindos por parte dos pagãos e, ao mesmo tempo, demonstrar a validade de sua fé com argumentos racionais que sustentassem a credibilidade dela. Esses eram os primórdios da teologia cristã, que logo se desenvolveria e se transformaria num importante elemento de influência em todos os âmbitos da sociedade pagã daquela época, desde os debates retóricos até os grandes e diversificados problemas que surgiam no interior mesmo da religião cristã, que deram origem a distintas ramificações que se dividiam em ortodoxia e heterodoxia, sendo esta última as chamadas heresias.

      Gregório Nazianzeno se encontra no séc. IV, já em meio às disputas entre os cristãos de fé nicena e os hereges eunomianos, macedonianos e apolinaristas, grupos cujas raízes se encontram em subdivisões de uma heresia mais abrangente: o Arianismo. Trata-se, então, da época do embate entre as doutrinas trinitiarianista do Concílio de Nicéia e os arianos, em suas categorias: homeusianos, homeos e os anomeus [1].

    Nessas disputas, evidentemente, todos os grupos faziam uso da teologia para justificar seus argumentos e validar seu discurso diante da comunidade cristã como um todo. Contudo, nesse ínterim, Gregório decide colocar a questão: quem é o teólogo? E o que é a teologia? Fazendo isso, ele punha em dúvida os métodos dos intelectuais arianos e, simultaneamente, colocava as bases para os intelectuais ortodoxos de fé nicena. É dessa maneira que, “em seus cinco discursos teológicos, ele desenvolve uma série de ‘discursos sobre o método’. Discute as fontes da teologia, as características do teólogo, a ecclesia docens e a ecclesia discens, o objeto da teologia, o espírito da teologia, fé e razão” [2].   

    Esse texto pretende discorrer sobre as respostas dadas por Gregório às questões levantadas por ele mesmo. Para tanto, se faz oportuno esclarecer o que são os discursos e seus critérios de composição.

Os discursos do Nazianzeno

     Apesar de nascido no seio de uma família cristã, Gregório teve uma educação embasada também no classicismo de sua época. Esse fato, fez com ele creditasse grande estima à formação intelectual, entretanto sob a condição de subordinar os valores morais e estéticos à doutrina cristã. Isso se torna relevante, posto que em sua forma de escrever saltam aos olhos os elementos clássicos de comunicação e redação de discursos. Fato esse que lhe rendeu o título de “Demóstenes cristão”.

   Os cinco discursos teológicos (Disc. XXVII – XXXI) foram escritos durante seu governo em Constantinopla, então, capital do Império Romano do Oriente. Seu estilo segue as diretivas do discurso deliberativo, isto é, um pronunciamento onde se encontram o aconselhamento ou a dissuasão a alguma prática [3]. Trata-se do discurso onde a reflexão sobre a ação e suas consequências são parte do conteúdo discutido. Contudo, não se limitava a isso, era necessário usar raciocínios que validassem ou refutassem os comportamentos neles analisados, portanto, o discurso deveria ser racional ao tempo que pragmático. Tudo isso sob a tutela da ars rethorica, a retórica clássica que naquelas alturas tinha status de técnica do discurso, da comunicação e da persuasão. O uso desse tipo de discurso é propriamente devido sua praticidade, pois,

davam a Gregório maior oportunidade para estabelecer sua habilidade retórica que os demais escritos. Encontramos neles todos os artifícios da eloquência asiática – figuras, imagens, antíteses, interjeições, frases cortadas – empregados com uma abundância que ao leitor moderno parece excessiva [4].

     Apesar de fazer uso das técnicas empregadas pela retórica, Gregório, como cristão, não os usa mais que em sua causa formal, ou seja, ele reproduz o modelo de composição do discurso corrente em sua época, porém – graças à linguagem teológica – seus discursos tem uma tonalidade homilética. “Ao concebê-los ele tinha a intenção que fossem homilias edificantes. Referindo-se a exemplos, frases ou imagens da Bíblia, e em tudo neles é considerado a luz da eternidade” [5]. Desse modo, os discursos do Nazianzeno são constituídos da forma retórica de deliberação e da exortação homilética do Cristianismo.

   Graças a esse estilo retórico de escrita e a segurança da fé cristã-nicena que professava, ele pôde compor raciocínios habilidosos e sólidos contra a heresia ariana – particularmente contra os eunomianos – que constituía a grande ameaça à ortodoxia naquele período. Em seus escritos, Gregório “aplica-se a comentar a doutrina relativa à natureza de Deus, isto é, o dogma ortodoxo da Trindade, que para ele representa o miolo do Cristianismo e de toda religião” [6].

     Os cinco discursos teológicos são dirigidos à comunidade cristã-nicena como exortação a manter-se na ortodoxia, porém acabaram por constituírem-se também numa provocação e refutação da argumentação herética dos arianos que, pelo testemunho dos discursos, se infiltravam nas celebrações em que eles eram pronunciados [7].

    Nesses discursos, o Nazianzeno confessa sem reservas a crença na consubstancialidade das três hipóstasis divinas. Não somente isso, pelo seu estilo ele une fé e filosofia para demonstrar, por meio da argumentação lógica, a veracidade da fé que defende e invalidar os silogismos dos adversários doutrinais. Tais escritos formam um conjunto metódico de exposição da fé.

O primeiro (27) arrola as pressuposições ou disposições interiores que se exigem daqueles que ousam abordar as mais elevadas especulações teológicas, quais sejam: um grau de maturidade espiritual, a pureza do coração e a reverência. O segundo (28) pormenoriza a possibilidade e o alcance do nosso conhecimento de Deus. Os três últimos (29-31) versam sobre o dogma da SS. Trindade [8].

As discussões sobre a Trindade faziam parte do cotidiano do círculo dos intelectuais cristãos de então, “em toda a parte, inclusive nas ruas e praças públicas, discutiam-se as mais difíceis questões trinitárias” [9]. Gregório não aprovava esse tipo de discussão irrefreada e desmedida sobre a mais importante declaração de fé cristã que é o dogma trinitário; não lhe agradavam as disputas dogmáticas quando desencadeadas fora dos redutos da teologia e dos teólogos que fossem competentes para isso [10].

Em função disso, Gregório colocou as seguintes questões sobre o ambiente em que se encontrava: quem é o teólogo? E o que é a teologia? Estas são as perguntas que fundamentam os dois primeiros discursos (Disc. XXVII - XXVIII). O primeiro é feito à maneira de uma introdução que desemboca no segundo no qual discorre sobre o conteúdo. Respectivamente, ele coloca os critérios sobre quem pode discutir sobre as verdades divinas, e qual é o objeto, o método e a disciplina que se propõe a isso – como já aludido acima.

O teólogo e a teologia

   O discurso 27, o primeiro dos cinco teológicos, trata de responder à pergunta sobre quem, de fato, pode ser considerado teólogo. Nele Gregório avalia as condições necessárias para que alguém tenha competência em deliberar sobre as verdades reveladas da religião cristã. Esse discurso divide-se em dois grandes blocos. A princípio ele estabelece que tipo de linguagem deve ser utilizada para falar sobre Deus e as coisas a ele relacionadas; em seguida situa quem é o teólogo e os critérios para que alguém seja considerado assim. Contudo, antes do mais, o Nazianzeno coloca um pressuposto:

Não é a qualquer um, escuta-me bem, não é a qualquer que lhe corresponde falar de Deus. Não é isso uma coisa que se adquire sob um preço baixo e que compete aos que rastejam sobre a terra. Digo algo mais: não se pode fala sempre de Deus, nem com todos, nem sob qualquer aspecto; se pode fazer em certas ocasiões, com certas pessoas e em certa medida (Disc. XXVII,3) [11].

      Com isso ele já repreendia as deliberações desmedidas sobre os dogmas cristãos que aconteciam em qualquer lugar e baixo a quaisquer aspectos, que tanto o incomodavam (como já aludido acima). Para Gregório, portanto, o lugar para falar de Deus é no círculo teológico, usando uma linguagem teológica, que significava, entre outras coisas, considerar a Revelação de Deus. O “Demóstenes cristão” “se opõe a dar beligerância no doutrinamento teológico aos que mantém critérios teóricos e práticos contrapostos à revelação cristã” [12].

     Tendo delimitado o ambiente no qual se pode falar de Deus, Gregório define sobre quais categorias linguísticas se deve fazer isso. Tais categorias se referem às regras mesmas do discurso teológico, em suas palavras: “Falar misticamente das coisas místicas, e santamente das coisas santas” (Disc. XXVII, 5) [13]. Esse modo místico de falar consiste na aceitação do mistério tal como é, ou seja, incognoscível em sua essência; paralelo a isso, reconhecer os limites dos raciocínios humanos que não o alcança. De igual modo, a linguagem teológica caracteriza o teólogo como alguém que não tem pretensão de querer esclarecer o inefável a qualquer custo, suas discussões são limitadas entre aquilo que ele pode inteligir e aquilo que Deus mesmo revela sobre si. Assim sendo, o teólogo é um homem de fé que não reduz as verdades divinas a silogismos retóricos para vencer em disputas intelectuais, como faziam os filósofos. À vista disso, ele escreve:

Porque é realmente necessário dedicar-se ao estudo desinteressado para assim poder conhecer a Deus e uma vez mais tenhamos encontrado ocasião propícia para julga a retidão da teologia. E com quem se pode falar de Deus? Com aqueles que tomam o assunto a sério e não como coisa qualquer, um objeto de diversão prazerosa depois das corridas de cavalos, os teatros, as canções, as satisfações do ventre e do que está abaixo do ventre; para estes, também a insistente conversa sobre tais questões e a destreza das disputas dialéticas constituem um elemento de prazer (Disc. XXVII, 3) [14].

   Gregório pretende demonstrar que ser teólogo, de certo modo, depende de intenções interiores, notadamente espirituais; pois para ele o ofício do teólogo é resposta a uma vocação cristã [15]. Nessa empreitada é fundamental tomar Deus como sujeito de relação e adoração, não meramente como objeto de estudo ou para pretextos dialéticos de discussão filosófica. Em resumo, “ser teólogo era, para o Nazianzeno, ser o ‘arauto de Deus’. Estimava que havia que adquirir primeiro, por um itinerário claramente contemplativo e que conduz a luz do conhecimento, uma competência real nas coisas divinas. Logo, pode-se assumir uma função teológica, porém sem reduzir a teologia a uma técnica” [16]. Em função desse receio de que a teologia se transformasse simplesmente em mais uma arma retórica – isto é, elemento puramente técnico – escreveu o discurso 28 sobre a natureza da teologia.

     No segundo discurso (Disc. XXVII), ele define a teologia e traça vias metodológicas para ela. Sua definição de teologia é simples, refere-se ao estudo de Deus em si mesmo, à Unidade da Trindade. Não à toa, logo no início acentua-se tal conceituação

[...] demos mais um passo e vamos agora ao discurso da teologia. Coloquemos Deus à cabeça deste discurso, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, que são seu objeto (Disc. XXVIII, 1) [17].

      A ciência teológica é, portanto, voltada para Deus em sua mesmidade como objeto de estudo, enquanto ele é, também, sujeito de relação e para o qual deve-se render adoração. Tendo isso em vista, a ideia puramente retórica da teologia é refutada, e assim, o Nazianzeno assegura ao saber teológico e suas discussões a ligação primordial à fé cristã em sentido mais amplo, isto é, na fé pregada e vivida/testemunhada.

        Apresentado a natureza da teologia, ele coloca as bases de seu método teológico. Nesse discurso a metodologia é apresentada como reconhecimento dos limites do homem, colocando de modo evidente a corporeidade – pois Gregório carrega uma influência platônica nesse quesito. Entretanto, a corporeidade, traduzida nos sentidos, não é de todo um mal, pois, permite ao homem sentir a natureza à sua volta e, através da natureza, ele pode ver as “costas de Deus” como Moisés (cf. Ex 33,23). Gregório aponta, metaforicamente, a analogia ente.

Tal é, enquanto eu conheço, a grandeza de Deus em suas criaturas e nas coisas produzidas e governadas por ele... pois as costas de Deus é tudo o que se pode conhecer dele após seus passos [...] Assim deves fazer teologia [...] (Disc. XXVIII, 3) [18].

            Seguramente essa analogia ainda não basta para a teologia, pois sua função é na verdade demarcar os limites da razão. Mas, limites entre o quê? Entre o saber da existência de Deus e conhecer a sua essência, isso porque “uma coisa é estar seguro de que algo existe e outra muito distinta saber o que esse algo é” (Disc. XXXVIII, 5) [19]. Colocando essa barreira sobre o saber o que Deus é, Gregório imobiliza certos discursos heréticos e pagãos de seu tempo que tinham pretensão de saber sobre essência da divindade. Em contraponto, coloca em curso uma teologia apofática (Disc. XXVIII, 7ss) sobre a qual não tratarei aqui.

    Ergue-se, então, a questão: se a teologia é o conhecimento de Deus em si mesmo, como ela pode discutir sobre ele se a razão não o alcança? Aqui entra o dado cristão: a Revelação. Através da Revelação de Deus pelo seu Filho, o homem tem a possibilidade, não de conhecer a substância mesma de Deus, mas seus planos e – o que era mais importante nesses discursos – reconhecer que ele é Trindade e Unidade. Nesse ponto, o foco se concentra na fé. Em outros termos, somada à analogia ente, a fé naquilo que Deus diz de si mesmo por seu Filho, no Espírito Santo é condição sem a qual não existe verdadeira teologia. Escreve Gregório:

Se tu, com o pensamento, percorres o ar e todo o que concerne ao ar, poderás tocar comigo o céu e as coisas celestes. Porém, se compreendestes realmente tua debilidade em contato com as coisas que estão mais próximas de ti, e hás conhecido que a razão consiste em reconhecer o que acima dela, para que não sejas completamente terreno e estejas atado à terra, ignorando inclusive tua ignorância, deves deixar-te guiar pela fé mais que pela razão (Disc. XXVIII, 28) [20].

   O raciocínio do Nazianzeno sustenta que sem a fé a teologia se transforma num trivial aparato discursivo como qualquer outro. Uma mera técnica para debates entre intelectuais. Convém ressaltar, que Gregório de modo algum é anti-intelectualista, ele apenas tentar impor limites tanto à forma de se produzir teologia, como também a quem deve fazê-la. Para tanto, aqueles que devem ser “ignorados” de fazer teologia “não são os simples, mas os indignos. Somente a indignidade impossibilita a reflexão cristã. O verdadeiro cristão, ainda que seja simples, pode fazer teologia porque tem o essencial: a pureza de coração” [21].

Considerações finais

A teologia e o teólogo são elementos imprescindíveis na história do pensamento em geral, e de maneira específica nos rumos do Cristianismo no curso do tempo. Essa é mais uma razão para se debruçar no estudo sobre eles como o fizera Gregório Nazianzeno. A estes elementos citados, o bispo capadócio recorda a prioridade de Deus diante da reflexão sobre ele mesmo.

A vida desse Padre da Igreja pode ser resumida nos termos: fides quarens intellectum, ratio orationem quaerens, homo Deum quaerens – fé buscando entendimento, razão buscando oração, homem buscando Deus. E esses termos de vida pessoal ele passou para sua análise teológica, à sua metodologia e visão de mundo.



[1] O Arianismo negava a consubstancialidade do Filho, segunda pessoa da Trindade, mas creditava a ele somente a semelhança. As categorias ou subdivisões arianas surgiram a partir da forma como estas se relacionavam com essa ideia. De tal modo, os homeusianos aceitavam que havia semelhança entre a substância do Pai e do Filho, os homeos apenas que essa semelhança dava somente segundo as Escrituras e os anomeus, mais radicais, que pregavam a total dessemelhança das substâncias do Pai e do Filho. [cf. NACIANCENO, Gregorio. Los cinco discursos teológicos. Madrid, Ciudad Nueva, 1995. (Biblioteca patrística 30) Introducción. p. 25.]

[2] QUASTEN, Johannes. Patrología I: La edad de oro de la patrística griega. Madrid. Biblioteca de Autores Cristianos, 1977. p. 275-276.

[3] cf. ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro, Ediouro; Editora Tecnoprint, 1990. p. 47 – disponível in: https://pt.scribd.com/document/377756653/Arte-Retorica-e-Arte-Poetica-Aristoteles-pdf - acesso 05 fev 2022.

[4] QUASTEN, Johannes. Patrología I: La edad de oro de la patrística griega. Madrid. Biblioteca de Autores Cristianos, 1977. p. 265.

[5] CAMPENHAUSEN, Hans Von. Los padres de la Iglesia I: Padres griegos. Madrid, Ediciones Cristandad, 1974. p.131.

[6] Ibidem. p. 132.

[7] Sobre isso Gregório mesmo é quem afirma num dos discursos: “que nossos espiões suportem a nós nesse momento” (Disc. XXVII, 2)

[8] BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. Petrópolis -RJ, Vozes, 2004. p. 81

[9] Ibidem. p. 80.

[10] cf. CAMPENHAUSEN, Hans Von. Los padres de la Iglesia I: Padres griegos. Madrid, Ediciones Cristandad, 1974. p.135.

[11] NACIANCENO, Gregorio. Los cinco discursos teológicos. Madrid, Ciudad Nueva, 1995. (Biblioteca patrística 30) p. 78.

[12] TREVIJANO, Ramón. Patrología. Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1994. (Manuales de teología) p. 202.

[13] NACIANCENO, Gregorio. Los cinco discursos teológicos. Madrid, Ciudad Nueva, 1995. (Biblioteca patrística 30) p. 82-83.

[14] Ibidem. p. 79.

[15] cf. Ibidem. Introducción. p. 33.

[16] TREVIJANO, Ramón. Patrología. Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1994. (Manuales de teología) p. 201.

[17] NACIANCENO, Gregorio. Los cinco discursos teológicos. Madrid, Ciudad Nueva, 1995. (Biblioteca patrística 30) p. 93.

[18] Ibidem. p. 96-97.

[19] Ibidem.p. 99-100.

[20] Ibidem. p. 136.

[21] Ibidem. Introducción, p. 32-33.

terça-feira, 21 de novembro de 2023

ALINHAVADO SOBRE A ÉTICA: DE HOMERO A KANT

 


Bruno R. Sales

            As diversas culturas se fundamentam em costumes, e estes são os lugares familiares de regras de ação e de condutas que as orientam. Estes costumes, que podemos aludir à palavra grega ethós, quando relacionados com aspectos específicos como região, época ou povo particular, denomina-se moral. Em função dessas especificidades existem diversas “morais”. Contudo, há um fundamento que é comum a todas elas, isto é, existe algo que ultrapassa os costumes particulares e são, evidentemente, universais, sendo o alicerce e modelo de todas as morais, a isto chama-se ética. A responsabilidade da ética é trazer aos sujeitos critérios sob os quais eles possam julgar, discernir e escolher entre o que é o Bem e o Mal. Por isso, ela é formada por princípios imutáveis que são considerados em sua universalidade diante do gênero humano.

            No desenrolar da história da filosofia a ética foi uma preocupação constante. Os filósofos sentiram a necessidade de interrogar sobre quais tipos de comportamento constituíam uma elevação do espírito de humanidade, isto é, qual modus vivendi era o adequado para se realizar como ser humano.  No período homérico da Grécia Antiga, temos a ideia de areté, as virtudes heroicas e nobres. Tratava-se de um comportamento que se fundamentava nos feitos heroicos e guerreiros de certas figuras que serviam como arquétipo moral para a aristocracia. Tem-se como testemunha desse conceito as obras de Homero: Ilíada e Odisseia.

Tal conceito – areté – é usado pelo poeta grego “em seu mais amplo sentido, não somente para designar a excelência humana, mas também para mostrar a superioridade dos seres humanos” [1]. Os valores da heroicidade eram sintetizados nas ações de coragem e distinção do homem comum, este sendo considerado de duas formas, como um sujeito de classe social inferior (portanto, não aristocrático) e outro como um sujeito fraco (entendido como covarde) em suas atitudes. Não à toa, em muitas ocasiões da narrativa da Ilíada vê-se grandes guerreiros exortando seus companheiros de armas e a reprovação às atitudes de covardia. Para exemplificar, vê-se a exortação de Heitor ao Tidida Diomedes, quando este virou seu cavalo para voltar à cidade de Tróia e fugir da guerra (Ilíada, Cant. VIII, 160-174):

[...] “Tidida, apreço te concediam os Dânaos com lugar de honra... mas, agora te vilipendiarão. Afinal, fostes uma mulher. Foge lá, menina medrosa”.

[...]

Aos troianos bradou Heitor, vociferando bem alto:

“Sede homens, amigos, e lembrai-vos da bravura animosa!” [2].

            O modelo ético de Homero se baseia na aspiração de proezas nas quais o perigo é esquecido e a própria vida do indivíduo é posta de lado, não somente como ato para prova de coragem, mas como busca de feitos em prol de um bem maior. Isso evidencia que “apesar do predomínio do significado bélico, há, em Homero, um sentido “ético” mais geral. [...] que designa ao homem de qualidade, para o qual, na vida privada ou na guerra, regem determinadas normas de condutas” [3]. Noutros termos, o homem ético diferencia-se dos demais, por seguir em sua conduta normas de constância no bem expressas nos atos corajosos.

            Posteriormente, Platão e Aristóteles formularam um sistema coeso e bem estruturado sobre o agir ético. Tomando o sistema aristotélico, o Estagirita não rejeita os ideais homéricos, porém, os reformula e lhes dá maior profundidade. Em sua Ética a Nicômaco, o filósofo não vai apenas distinguir entre ações nobres ou não, mas vai analisar o comportamento humano a partir de sua finalidade e fonte. De modo tal, que o leva a partir da afirmação de que

Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem [4].

            O fim de todas as ações do homem é o Bem, porém, para Aristóteles esse Bem está relacionado com a felicidade (eudamonia). Esta, por sua vez, é classifica em duas instâncias: a felicidade própria, realizada nas ações particulares do bom agir; e a dos outros, traduzida na política, como uma ação comunitária na qual todos os homens procuram realizar o Bem supremo, isto é, uma felicidade geral; sendo esta última a mais desejada, pois, segundo o filósofo procurar o bem de uma pessoa é algo desejável, porém é mais formoso e divino consegui-lo para um povo e para cidades” [5].

            Até aqui Aristóteles segue em certa sintonia com a areté homérica, porém, ele aprofunda o assunto quando pergunta sobre a fonte da qual surge a vontade de agir de forma boa e de onde brota o sentimento de comunidade que tende para a felicidade conjunta. Ora, não é de se espantar que ele encarrega a razão dessa tarefa.

Se, então, a função própria do homem é uma atividade da alma segundo a razão, ou que implica a razão [...] dizemos que a função do homem é uma certa vida, e esta é uma atividade da alma e ações razoáveis, e na vida do homem bom estas mesmas coisas de modo bom e formoso, e cada um realiza segundo sua própria virtude [6].

Grosso modo, a ética aristotélica visa o aperfeiçoamento individual e comunitário e para tanto, estabelece a razão como meio de realização desse processo. O homem se diferencia dos demais seres por sua racionalidade e, se ele quer agir de forma boa e feliz, deve usá-la para tornar-se melhor a cada nova ação.

            Prosseguindo nessa mesma via, na Idade Média vemos a síntese do pensamento grego com a fé cristã. Nesse período, a ética se baseia no seguimento aos mandamentos de Deus e na observância de sua vontade. Contudo, para alguns, não se tratava de um seguimento cego, mas deveria também passar pelo crivo do intelecto, posto que nele reside o que há de superior no ser humano como ente criado, por Deus, como racional e livre. Tomás de Aquino, por exemplo, estabelece sua ética na vontade humana como uma potência do intelecto que, como o Estagirita, tende naturalmente para o Bem (Deus mesmo) e necessita da razão para purificá-la pelos hábitos que se tornam virtudes (cf. Suma Teológica, I, Q. 80-82; I-II, Q. 49-67).

            Na Modernidade, por sua vez, Kant foi um dos grandes expoentes da reflexão sobre a ética. O filósofo alemão, inserido no contexto iluminista, determina os comportamentos humanos dentro de parâmetros que se fixem na razão prática, isto é, numa racionalidade na qual “se ocupa com os fundamentos de determinação da vontade, que é uma faculdade ou de produzir objetos correspondentes às representações ou determinar a si mesma” [7]. A ideia de razão reguladora da vontade parte da noção de liberdade. Dessa maneira, o homem livre pode regular sua vontade de acordo com certos princípios racionais que, a priori, ele tem de modo geral como dever pelo dever – imperativo categórico – mas também através de leis reguladoras particulares a posteriori, isto é, máximas de condutas.

            Entretanto, o sistema ético kantiano possui diferenças significativas acerca das motivações do indivíduo para agir bem. As motivações corretas devem estar de acordo com o princípio de autonomia da vontade, ou seja, com a faculdade do homem de determinar-se a si mesmo; ao invés de procurar uma motivação heterônoma e, portanto, externo a ele.

Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objectos do querer). O princípio da autonomia é, portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal [8].

            Em função desse conceito de autonomia, a ética kantiana se desmembra da ideia eudaimônica grega e da tendência humana para Deus como Bem Personificado, vista no medievo, e se fixa na moralidade deontológica. Assim, a felicidade deixa de ser o fim buscado do agir bem, para tornar-se uma consequência natural dele. O que vai tornar-se importante é a intenção da ação ética, se for realizada por uma boa vontade, então o homem tornar-se digno e a beatitude lhe alcança. Não somente isso, mas também a felicidade da comunidade humana como um todo dependerá dos puros sentimentos de agir bem pelo fato disso ser bom.



[1] JEAGER, Werner. Paideia: los ideaes de la cultura griega. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1985. p. 21

[2] HOMERO. Ilíada. São Paulo, Penguin classics/Companhia das letras, 2013.  p. 275.

[3] JEAGER, Werner. Paideia: los ideaes de la cultura griega. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1985. p. 23.

[4] ARISTÓTELES. Ética nicomáquea. Madrid, Planeta deAgostini, 1997. p. 11

[5] Ibidem. p. 13

[6] Ibidem, p. 23-24.

[7] KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Petrópolis-RJ, Vozes; Bragança Paulista, São Paulo; Editora Universitária, São Francisco, 2016. (Pensamento Humano) p. 15.

[8] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa, Edições 70, 2007. p. 85

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

CONSIDERAÇÃO SOBRE MICHAEL FOUCAULT: DISCIPLINA COMO FORMA DE PODER OU PODER DSCIPLINAR

 


Bruno R. Sales 

Fazendo uma genealogia do poder, o filósofo observou os diversos modos de manutenção da submissão dos indivíduos na sociedade, através de um exame histórico, utilizando um método ascendente, partindo da base, analisando a maneira como os mecanismos de controle puderam funcionar, e ainda, como tais mecanismos, em determinado momento, relacionados numa gama de factos, viram-se numa conjuntura economicamente vantajosa e politicamente útil.

O filósofo conclui que é provável que em certa época tenha surgido uma ideologia da educação, contudo, a base de tal coisa não seria necessariamente uma ideia, é muito menos e muito mais do isso. São instrumentos reais de formação e de acumulação do saber: métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de inquérito e de pesquisa, aparelhos de verificação. Dessa maneira, é possível perceber que o poder, para exercer-se nestes mecanismos sutis, é obrigado a formar, organizar e por em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de saber que não são construções ideológicas.

Foucault propõe um estudo sobre o poder fora dos limites do Leviatã hobbesiano, longe dos limites dados pela jurídica e pelos estamentos. Segundo ele, é preciso estuda-lo a partir das técnicas e táticas de dominação, isto é, ter como partida a linha metodológica seguida por ele. Percorrendo, assim, os limites deste método de estudo, o filósofo se depara com um fato histórico que pode ajudar a compreender os problemas colocados por ele mesmo, e este é o nascimento da teoria jurídico-política da soberania, o direito jurídico e político do poder sobre o indivíduo.

            Então, analisando os modos de governos dos séculos XVI ao XVII, ele percebe que, na sociedade feudal os problemas dados à teoria jurídica e política da soberania referiam-se de forma direta à mecânica geral do poder, ou seja, sua maneira de lidar com os problemas recobria a totalidade do corpo social, pois o poder era exercido de maneira essencial na relação entre o soberano e os súditos. Contudo, nos séculos XVII e XVIII, ocorreu uma mudança importante, o surgimento de uma nova mecânica de poder, com procedimentos específicos, instrumentos totalmente novos e aparelhos bastante diferentes.

            Este novo mecanismo se apoia mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus produtos, tornando-se, portanto, um meio que permite extrair dos corpos tempo e trabalho mais do que bens e riquezas. Este mecanismo é exercido e mantido pela contínua vigilância [pan-óptico], ao invés da descontinuidade por meio de taxas e obrigações distribuídas de tempos em tempos, de modo que, trata-se muito mais do que um sistema minucioso de coerções materiais do que a existência física de um soberano. Por isso, seu princípio é uma nova economia do poder, na qual se deve propiciar um crescimento das forças dominadas e o aumento da força e eficácia de quem as domina.

            Assim, a teoria da soberania estava vinculada muito mais com a terra e seus produtos, de modo que, se referia a apropriação pelo poder dos bens e não trabalho, o que permitia transcrever em termos jurídicos emitidos descontinuamente tal apropriação, sem recorrer a algum sistema de vigilância permanente, criando nesse ponto um calcanhar de Aquiles na sua estrutura.

            No entanto, o novo tipo de poder não está circunscrito em termos da soberania, ele é um instrumento fundamental para a constituição, principalmente do capitalismo industrial e do tipo de sociedade a qual corresponde, é um poder alheio à forma de soberania, e o qual o Foucault chamou de poder disciplinar.

            Este novo poder deveria usurpar o lugar da soberania, porém, ela continuou existindo, não somente como ideologia, mas também como organizadora dos códigos jurídicos nascidos no século XIX. O que aconteceu então foi uma relação entre os dois pontos, de forma que, os sistemas jurídicos permitiram uma democratização da soberania, através da constituição de um direito público articulado com a soberania coletiva, no exato momento em que esta democratização fixava-se profundamente, através dos mecanismos de coerção disciplinar.

A partir do momento em que as coações disciplinares tinham que funcionar como mecanismos de dominação e, ao mesmo tempo, se camuflar enquanto exercício efetivo de poder era preciso que a teoria da soberania estivesse presente no aparelho jurídico e fosse reativada pelos códigos. Temos, portanto, nas sociedades modernas, a partir do século XIX até hoje, por um lado, uma legislação, um discurso e uma organização do direito público articulados em torno do principio do corpo social e da delegação de poder; e por outro, um sistema minucioso de coerções disciplinares que garanta efetivamente a coesão deste mesmo corpo social. Ora, este sistema disciplinar não pode absolutamente ser transcrito no interior do direito que é, no entanto, o seu complemento necessário.

            Deste modo, é dentro dos limites da soberania e da disciplina que se dá o exercício do poder, porém, estes limites não são idênticos, ambas exercem jogos de poderes diferentes, pois uma se dá pelo direito público da soberania e o mecanismo poliformo da disciplina. A disciplina porta um discurso que não pode ser o de direito, pois, seu discurso é alheio ao da lei e da regra, no que toca ao efeito da vontade soberana. Seu discurso é o da regra natural, assim sendo o da norma, com a definição de códigos que não serão os da lei, mas o da normalização, de forma que se referem a um horizonte teórico que não pode ser baseado no discurso de direito, mas no domínio das ciências humanas. Mas mesmo estas diferenças não impedem que estes se relacionem, e que por meio desse relacionamento submetam os indivíduos.

            

           

A NECESSIDADE DA TEOLOGIA PARA A HUMANIDADE NA SUMA TEOLÓGICA DE TOMÁS DE AQUINO

  Bruno R. Sales Talvez uma das grandes perguntas feitas à teologia hoje é: qual a necessidade de haver estudos teológicos? Essa questão...