Bruno R. Sales
Esse texto é uma tentativa de
mostrar o caminho argumentativo do teólogo/filósofo Andrés Queiruga que
desemboca no conceito de pisteodiceia. De tal modo, será feito baseado em três
pontos que culminam no tema proposto, são eles: o mal inevitável, o mundo como origem
do mal, Deus inocente e, por fim, pisteodiceia.
A
inevitabilidade do mal
A primeira situação atestada por
Queiruga é que o mal é inevitável. Todos os seres sofrem de males. Considerando
isso, o mal não é uma questão, a princípio, de cunho religioso, mas
essencialmente antropológico, pois diz respeito a humanidade como um todo. Por
essa razão ele resgata o termo ponerologia (tratado sobre o mal), como
ele mesmo afirmara em entrevista:
O livro tem um
subtítulo: "Da ponerologia à teodiceia". Uma palavra grega que
significa "mal". Ponerologia é um tratado sobre o mal. Aí parto de
uma evidência: o mal é um problema humano, não imediatamente religioso. Quer
seja crente ou ateu, terá crises e doenças, e vai morrer. As crianças dos
crentes e dos ateus nascem da mesma forma... Porque o mal é um problema humano,
que afeta a todos, anterior à resposta ou não-resposta religiosa. Por isso, é
ponerologia, um tratado que prescinde do fato de ser crente ou ateu [1].
O
mal, portanto, é constatado pelo Queiruga como inevitável pelo fato de todos
sofrerem, religiosos ou não, e precisarem conviver por toda a vida com os males
do mundo.
Mundo
como origem do mal
Da inevitabilidade do mal surge
então a pergunta: se o mal é inevitável, de onde se origina? O teólogo/filósofo
responde que se origina no mundo, ou seja, o local de atuação do mal é também
sua origem. No entanto, ele esclarece que o mundo não é mal em si, ele gera o
mal pela sua condição de finitude.
A autonomização da ponerologia,
além de olhar o mal em si, longe das mediações religiosas, faz vir à tona o
caráter inevitável do mal, em qualquer mundo possível. Isso não no sentido de
que o mundo seja mau em si, mas embora reconhecendo sua bondade fundamental,
reconhece que é finitamente bom e que, “devido à sua finitude, não se pode
evitar que nele apareçam também, ainda que seja de forma fortuita ou
‘parasitária’, carências, disfunções, destruições e conflitos que, com toda razão,
qualificamos como maus” [2]
Portanto, o mundo dá à luz ao mal
porque é finito.
Deus
inocente
Se a origem do mal
é o mundo enquanto condicionado pela finitude, então Deus é inocente. Contudo,
ergue-se a questão: “se Deus é onipotente, transcendente e infinito, não
poderia ter criado o mundo sem mal, isto é, um mundo perfeito?”. Comentando a
teoria de Queiruga, Pozzo esclarece isso ao dizer que,
A abordagem
filosófica permite um avanço instransponível nessa questão. Se Deus cria, não
pode criar a si próprio. Sendo ele infinito, cria necessariamente algo finito.
Pensar que poderia criar algo infinito seria o mesmo que dizer que ele cria a
si mesmo, o que é um absurdo. Deus é o incriado, o existente desde sempre e
para sempre. Sendo o mundo finito, comporta necessariamente o mal [3].
Deus se torna inocente porque não é
capaz de criar algo infinito, pois isso seria o mesmo que criar outro Deus.
Desse modo, criando o mundo finito, Deus cria uma realidade carente de
perfeição absoluta, e assim, geradora e portadora de males. Queiruga reitera
que não nega a bondade e poder da divindade, mas afirma sua incapacidade de quebrar
as leis lógicas ordenantes do cosmos.
Neste sentido, se Deus decide
criar, ‘não pode’ evitar tal presença [do mal] (como ‘não pode’ fazer um
círculo quadrado). Pois bem, se ele se decide, só pode fazê-lo por amor à
criatura, e só o bem pode querer para ela. Isso significa que a existência vale
a pena para ela e que, portanto, o mal não pode destruí-la: o mal é
impedimento, mas não definitivo [4].
Queiruga também coloca Deus ao lado
da criatura na luta contra o mal; ele não luta no lugar dela, mas a auxilia.
Assim, ele confirma que “o mal não é problema de Deus, mas da criatura, não é
um problema do Ser, mas do ente: simplesmente enuncia a intransponível
limitação do mundo. Dado que o mundo-sem-mal é um nada” [5].
A
atitude pisteodiceia
Do caminho até aqui percorrido,
viu-se que, para Queiruga, o mal é inevitável, pois todos sofremos; sua origem
é o mundo devido a finitude deste; e o mundo é finito porque Deus assim o fez,
posto que não seria capaz de criar algo infinito, isentando a divindade da
origem do mal. Além disso, afirmou que o mal é um problema da criatura, isto é,
essencialmente um problema antropológico. Nesse aspecto antropológico entra a
pisteodiceia.
Antes do mais, é preciso esclarecer que a
pistoediceia não é meramente um conceito abstrato, mas uma atitude concreta, como
o próprio teólogo/filósofo afirma:
Toda pessoa, tanto se
pensa nisso como se não, tanto se o faz voluntariamente como se procura
evitá-lo de maneira mais ou menos expressa, toma posição diante do problema do
mal. Isto é, configura sua existência adotando uma visão da vida ou uma
concepção do mundo que determina seu modo de responder ao desafio dos males
concretos, das situações-limite e, em última instância, ao desafio que, em si
mesmas, formulam as deficiências provocadas pela finitude humana. Por isso,
trata-se de uma pistis, de uma ‘fé’ em sentido amplo: portanto, de
pisteodiceia” [6].
Pisteodiceia, portanto, é a resposta de fé
dada por cada cultura, grupo ou sujeito ao problema do mal em suas vidas.
Considere-se, portanto, que
A pisteodicéia
significa a “fé” num sentido amplo, filosófico e relativo à visão de mundo de
cada pessoa ou grupo. Ela possibilita uma compreensão ou uma forma de encarar a
realidade do mal, independentemente se defende que o mal torna o mundo absurdo,
como diz Sartre ou se, na perspectiva do fiel cristão, apoiado por sua fé, diz
que o mal não anula o sentido do mundo [7].
Considerações
finais
Tendo visto o caminho argumentativo que
Queiruga segue em sua teodiceia, da qual a culminância é a pisteodiceia, se pode
ver que o pensador está fazendo aquilo que ele mesmo propõe: recuperar e
repensar. Em sua teoria, ele recupera o sentido antropológico
fundamental do mal e o repensa em relação a Deus e ao próprio ser humano, de
modo que, no fim das contas a fé – como confiança e como visão de mundo – se
torna um fator fundamental para encarar o problema do mal.
[1] QUEIRUGA, Andrés Torres. ‘Deus
não condena ninguém. Nem a Hitler!’, afirma teólogo espanhol. [Entrevista
concedida a] José Manuel Vidal. 07 de ago 2011. In: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/42878-deus-nao-condena-ninguem-nem-a-hitler-afirma-teologo-espanhol - acesso 20 mar 2021.
[2] QUEIRUGA apud POZZO, Ezequiel dal.
O problema do mal repensado: uma abordagem filosófico-teológica em Andrés
Torres Queiruga. Dissertação (pós-graduação Teologia) - Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, p. 106, 2017. p.
38 = Disponível in: http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/7718 - acesso 20 mar 2021.
[3] Ibidem. p. 36.
[4] Ibidem. p. 36.
[5] QUEIRUGA, A. T. Do
terror de Isaac ao Abbá de Jesus: por uma nova imagem de Deus. São Paulo:
Paulinas, 2001. p. 228.
[6] QUEIRUGA apud POZZO, Ezequiel dal.
O problema do mal repensado: uma abordagem filosófico-teológica em Andrés
Torres Queiruga. Dissertação (pós-graduação Teologia) - Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, p. 106, 2017. p.
39 = Disponível in: http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/7718 - acesso 20 mar 2021.
[7] Ibidem. p. 38.
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