sexta-feira, 29 de julho de 2022

CONSIDERAÇÕES SOBRE A QUESTÃO VERDADE EM ALBERT CAMUS

 


Bruno R. Sales

 

O que é a Verdade? Essa questão preocupa os pensadores desde os primórdios do pensamento filosófico. Durante a passagem do tempo, alguns deixaram-na escanteada ou decidiram não profundar nela; outros tentaram elucida-la à exaustão. Das discussões promovidas sobre a verdade fizeram dela um poliedro espelhado no qual cada lado reflete uma ideia ou conceito diferente em relação a ela. Isso significa que, embora tendo aspectos comuns no cerne [quando afirmo isso tenho em mente as premissas básicas da Verdade: ela é a adequação da coisa ao intelecto (garante o real) e é oposição à mentira (garante argumentos válidos)], aspectos específicos diferenciam as diversas formas de lidar filosoficamente com a questão. Essas parcas considerações se propõem ser uma vista rápida no lado espelhado do poliedro que reflete a convicções de Albert Camus. Os aspectos aqui considerados sobre a verdade para o franco-argelino são apenas apontamentos para posterior discussão. E, evidentemente, esse pequeno texto não esgota toda a complexidade do tema.

Antes do mais, considere-se que Camus não crê numa verdade absoluta. Tal ideia aparece na obra camusiana como parâmetro para o suicídio filosófico, isto é, negar a consciência do absurdo para abraçar ilusões que são tomadas sob os aspectos de “razões de viver” [1]. Não à toa ele estabelece: “a noção de absurdo é essencial e pode figurar como a primeira das minhas verdades” [2]. Portanto, a premissa camusiana é o absurdo, a partir dessa perspectiva é analisada toda a realidade.

A verdade camusiana está assentada no terreno do puro humano e suas experiências na vida, e não numa realidade transcendente fora daquilo que é do homem. Isso significa que Camus não busca a Verdade (em termos metafísicos e ontológicos), mas o que é verdadeiro; isso demonstra uma postura de quem não procura por ideias absolutas, mas por certezas que firmam seus pés no real e na consciência do absurdo. N’O Mito de Sísifo essa escolha pelas certezas se manifesta na bifurcação entre a história e o eterno; escreve o filósofo: “entre a história e o eterno, escolhi a história porque amo as certezas” [3]. Ao que parece Verdade se torna sinônimo de ‘certezas’ e ‘verdadeiro’. E quando somadas essas palavras outro sinônimo surge e, parece-me, ele determina a ideia de Verdade camusiana, a saber: certezas verdadeiras [4].

A pretensão do filósofo franco-argelino é fugir, ou ao menos evitar o máximo possível, uma verdade ontológica. Para tanto, em função do forte acento antropológico, sua ideia sobre a verdade se baseia numa espécie de ‘dever’, um tipo de imperativo categórico aos moldes de Kant, é, pois, uma verdade deontológica. Esse tipo de compreensão se desdobra em duas formas de uso – ou dever – da verdade, uma subjetiva e outra intersubjetiva. Trata-se da honestidade e da sinceridade, respectivamente.

A respeito da honestidade pode-se observar, em Camus, como o dever da verdade consigo mesmo. Baseado no reconhecimento do absurdo que está diante de si, refere-se à condição de permanecer consciente da realidade absurda e tudo o que ela comporta (consciência da finitude, infelicidade, sofrimento, etc.). O próprio filósofo deixou em seus cadernos a seguinte síntese sobre esse assunto que pode ser aplicada à honestidade:

Viva na e para a verdade. A verdade de quem somos em primeiro lugar. Renunciar a compor com os seres. A verdade do que é. Não engane a realidade. Aceite, portanto, sua originalidade e sua impotência. Viver segundo esta originalidade até esta impotência. No centro a criação com as imensas forças de ser finalmente respeitado. A mentira coloca você para dormir ou sonhar, como a ilusão. A verdade é o único poder, alegre, inesgotável. Se pudéssemos viver apenas da e para a verdade: energia jovem e imortal dentro de nós. O homem de verdade não envelhece. Mais um esforço e ele não morrerá [5].

Ser honesto é uma das qualidades do homem absurdo. Ele não quer cair no autoengano, ao contrário, seu desejo é permanecer consciente daquilo que ele é. Isso se torna interessante quando se considera que o importante é o presente como categoria do hic et nunc (aqui e agora). Desse modo, o homem absurdo é verdadeiro consigo, usando de honestidade, porque sua preocupação é, temporalmente, agora, e, espacialmente, aqui. Tal homem, “seguro de sua liberdade com prazo determinado, de sua revolta sem futuro e de sua consciência perecível, prossegue sua aventura no tempo de sua vida. Este é seu campo, lá está sua ação, que ele subtrai a todo juízo exceto o próprio. Uma vida maior não pode significar para ele uma outra vida. Seria desonesto” [6].

Por conseguinte, intersubjetivamente, tem-se a sinceridade como dever da verdade com os outros. O ser sincero é compreendido como impulsos morais do sujeito, portanto, lida com o modo de tratamento com os outros [7]. Nos romances de Camus, a sinceridade é demonstrada como a outra face da verdade do homem absurdo. O expoente desses é O estrangeiro, do qual o próprio autor dissera se tratar da loucura da sinceridade onde o personagem principal, Mersault, não quer demonstrar nada além daquilo que ele sente [8], transformando-o no modelo do homem sincero. N’A peste, Dr. Rieux é a síntese do homem absurdo em sua honestidade, por ele saber que a praga faz parte de um mundo absurdo, e sua sinceridade, por considerar que é demasiado cansativo mentir, sendo preferível o uso constante da verdade [9].

Camus não desenvolveu por completo o raciocínio sobre a sinceridade, sua pretensão era inseri-la no terceiro tríptico sobre o amor, porém, sua morte precoce privou-nos disso. Pode-se constatar tal coisa devido a uma anotação em seu cahier VIII:

O terceiro andar é o amor: o Primeiro Homem, Don Fausto. O mito de Nêmesis.

O método é a sinceridade [10].

Contudo, mesmo não desenvolvendo o tema, o filósofo deixou as bases sobre as quais haveria de fazê-lo. Grosso modo, a sinceridade se insere como um princípio de verdade a ser usada com os outros e, concomitantemente, como uma categoria importante na visão moral camusiana.

A título de considerações finais, é preciso ter em mente que Albert Camus trabalha em duas linhas, uma horizontal e outra vertical. Tais linhas apresentam em si mesmas seus limites. A vertical não atinge os céus – seu tamanho não é infinito – ela limita-se a ser da altura do homem em sua estatura ereta; em outros termos, o homem pensa verticalmente sobre aquilo que sua estatura alcança. Horizontalmente, os limites são impostos pelos mesmos motivos, o ser humano não atinge, em seu horizonte, coisas que não estão ao seu alcance. Assim, a verdade camusiana tem limites humanos, não sem razão, pois, o filósofo confessa: “Quero libertar o meu universo de seus fantasmas e povoá-lo apenas com verdades de carne cuja presença não possa negar” [11].



[1] Cf. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro, Record, 2020. p. 22-25

[2] Ibidem. p. 59

[3] Ibidem. p. 144.

[4] No restante do texto, o termo Verdade referir-se-á a esse significado.

[5] CAMUS, Albert. Carnets III: mars 1951 – decembre 1959. Paris, Editions Gallimard, 1989. p. 223.

[6] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro, Record, 2020. p. 112.

[7] Ibidem. p. 31.

[8] Cf. ALBERT CAMUS: Un Combat Contre L'Absurde. Direção: James Kent. Produção de Pascale Lamche. França. La sept art/B.B.C./Cie des phrases e balises. 1997. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Cx9hn-8zonc&t=1255s – acesso em 26 jul 2022.

[9] CAMUS, Albert. A peste. Rio de Janeiro, Record, 2020. p. 280.

[10] CAMUS, Albert. Carnets III: mars 1951 – decembre 1959. Paris, Editions Gallimard, 1989. P. 187.

[11] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro, Record, 2020. p. 166-167

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