Bruno R. Sales
Άμαρτία é o termo grego usado
para designar pecado. Na tradição judaico-cristã o primeiro casal de seres humanos
incorreu num crime em função da quebra de uma regra posta pelo próprio Deus.
Eles não poderiam comer do fruto da árvore do conhecimento do Bem e do Mal (cf.
Gn. 2). O pecado, nesse contexto, é uma cisão nas relações entre criatura e
criador. Contudo, essa não é a única aplicação de significado para esse termo. A
Άμαρτία, para Aristóteles, tem um sentido que, mesmo não indo contra às
bases da ideia acima mencionada – isto é, um defeito nas relações –, expande o
conceito.
Em sua Poética (cap. XIII), o
filósofo escreve:
[…] a situação
intermediária, ou seja, aquela do homem que, sem se distinguir muito pela virtude
e pela justiça, chega à adversidade não por causa de sua maldade e de seu
vício, mas por ter cometido algum erro (Άμαρτία) […] [1]
O trecho acima descreve o personagem
ideal para uma tragédia. Sendo assim, o erro é uma das premissas do trágico.
Diferentemente de Adão e Eva, o personagem trágico não incorre necessariamente
num crime, mas em um erro, e tal erro pode ser o mais simples possível, trata-se
apenas de negligenciar, por um momento, a razão e o discernimento. Por isso, no
ideal trágico, o homem não se distingue muito, ele é o meio termo porque
pretende demonstrar a humanidade; se fosse muito mal seria um demônio, se fosse
muito bom, um anjo, porém, se tratando da medida ele é comum e incorre em erros
comuns, mas que podem ser fatais. Somente a humanidade comum peca.
Nesses termos, Άμαρτία é
também tida como desorientação ou, para usar uma palavra mais conveniente, inconsciência.
Enquanto para o Judeu-cristão a consciência foi consequência do ato pecaminoso;
para os gregos a falta dela é princípio do pecado. Um sujeito inconsciente de
sua humanidade, de sua personalidade e de sua racionalidade é um pecador (Άμαρτόλος).
O expoente exemplar desse pecador é Gregor Samsa.
Quando, “certa manhã, ao despertar
de um sonho inquieto, Gregor Samsa descobriu-se transformado num insuportável
inseto” [2], ele não estranhou sua metamorfose,
sua única preocupação continuou sendo o trabalho e a família. Inconsciente de
si, ele simplesmente vivia para os outros. De tal modo, Gregor peca por ter esquecido
de sua humanidade, a visão que ele teve si como inseto não o aborreceu, nem
entristeceu, ele foi indiferente a ela. Não parou para pensar. Samsa não tinha uma
vita contemplativa como aquela que os gregos propuseram para exercício
da consciência e do pensamento. Ele vivia de trabalhar, sem que tivesse um ócio
produtivo para olhar para ele mesmo.
Apesar de sua alienação, Gregor tem
um incentivo para que recorde sua humanidade. Quando seu pai tenta afastá-lo
para dentro do quarto, ele arremessa algumas maças contra Gregor-inseto e uma
delas lhe atinge nas costas e fica presa a uma ferida. No decorrer da
narrativa, sabe-se que esta maçã está apodrecendo em suas costas e ele a sente
presa lá.
[…] O ferimento sério,
com o qual padeceu mais de um mês – a maçã continuou, uma vez que ninguém se
atreveu a retirar, enfiada na carne, como uma recordação exposta –, pareceu
fazer até mesmo o pai se lembrar que Gregor, apesar de suas feições asquerosas e
deprimentes, era um membro da família. [...] [3].
Essa maçã que o incomoda é o grito que nosso
caixeiro-viajante ignora para relembrar que é um homem.
O pecado da desobediência de Adão e
Eva deu, como consequência, a capacidade da humanidade de ter consciência por
si e decidir nos parâmetros de seu livre-arbítrio. O fruto proibido – costumeiramente
tido como uma maçã – é, nesse contexto, o sinal do nascimento da autoconsciência.
Para Gregor, sua inconsciência é um pecado, porque desobedece ao que é humano
por natureza: o saber de si. A maçã no
meio de uma ferida em suas costas é um apelo para que ele se lembre que é um
homem, não um inseto. O homem peca por seu orgulho, mas de modo admirável ele
incorre noutro pecado quando deixa de orgulhar-se por ser o que é: humano.
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