Bruno R. Sales
Introdução
A humanidade luta. A vida, toda ela,
é em realidade uma grande luta. Não há nada mais verossímil que afirmar que
viver é lutar, enquanto sobreviver é combater. Entre a luta e o combate existem
sutis diferenças, não em seus cernes, mas no contexto em que se apresentam. Vida-luta
é constante, cotidiana, ordinária; a Sobrevivência-combate é pontual, eventual
e extraordinária. Luta-se todos os dias para manter-se vivo, sustentado,
alimentado e sem atraso nas contas. Sobrevive-se, combatendo diante de um
ambiente hostil, seja numa guerra ou crise, por exemplo. Não raro, vida e
sobrevivência se cruzam e sobrecarregam os pobres sujeitos que além de lutarem
precisam combater, isto é, mais que viverem, precisam sobreviver. É o peso
redobrado da cruz: o madeiro e os pecados.
A poesia de Augusto dos Anjos retrata
esse cruzamento do viver-sobreviver. Nela o eu lírico luta cotidianamente, ou contra
as dores desse mundo, ou para aceita-las budisticamente; e sobrevive combatendo
num ambiente hostil, como doentes que tentam combater a doença. E, como em
todos os conflitos, existem vencedores e vencidos. E o poeta paraibano tinha
consciência disso. É em função disso que denomino tríptico da vitória os
três sonetos que trazem esse tema, a saber: Psicologia de um vencido, Vencido
e Vencedor.
A vitória é o elemento central numa
luta. E, considerando os poemas de Augusto, ela se apresenta de duas formas,
positiva e negativa. Negativamente nos dois sonetos Psicologia de um vencido
e Vencido onde ela assume a face da vitória do outro lado que combate,
por isso o termo “vencido”, relativo à não-vitória daquele que fala pelos
versos. Sob outra perspectiva, ela se apresenta positivamente no poema de
titulação “vencedor”, portanto, alguém a quem pertence a vitória e cujo
objetivo alcançou. Sobre esse pressuposto baseio o tríptico do qual
dissertarei. Sobre isso tentarei dizer alguma coisa útil.
Para essa tarefa será feita uma análise em duas partes. A primeira, sincrônica, tomando por pressuposto a ordem cronológica da composição dos mencionados sonetos. A segunda, diacrônica, será mais literária, e considerar-se-á a ordem posta pelo autor no livro Eu (1912). De igual modo, convém dizer que utilizarei apenas a obra Eu em sua forma originária de como Augusto o publicou em vida, ou seja, sem as outras poesias ou os poemas esquecidos.
Análise
sincrônica: Ordem de composição
Seguindo a tábua cronológica de composição dos
poemas de Augusto do Anjos, elaborada por Francisco de Assis Barbosa [1]; os sonetos acima citados
foram compostos nas seguintes datas e locais:
Vencedor |
1902 |
Pau d’Arco |
Psicologia de um vencido |
1909 |
Paraíba (Atual João Pessoa) |
Vencido |
1909 |
Paraíba
(Atual João Pessoa) |
Agora, considerando o caminho da
vida do poeta em seus aspectos biográficos e de evolução literária, tem-se a
tênue – e hipoteticamente frágil – possibilidade de avaliar o desenvolvimento
temático do tríptico.
Em primeiro lugar, consideremos os
aspectos biográficos. Augusto nascera e crescera numa virada de século, mais
que isso, numa transformação social que fervilhava na sociedade brasileira na
passagem do séc. XIX para o XX. Passara a adolescência vendo seu pai doente
imóvel numa cama, e depois vira-o morto. Testemunhara o declínio dos engenhos
da família, e com eles declinava também o nome da família latifundiária dos
Carvalho de Pacatuba [2].
“É nesse ambiente de
decadência, doença e luto que vive Augusto dos Anjos. Mas o que desmorona não é
apenas sua própria família: é todo um amplo setor da classe latifundiária do
Nordeste atingida pelas transformações econômicas, sociais e políticas das
últimas décadas: a abolição da escravatura, a proclamação da República, a
construção da The Conde d’Eu Railway Company Limited, o estabelecimento da
Companhia de Engenhos Centrais anglo-holandesas. É a penetração do capitalismo
que, se por um lado leva progresso, por outro agrava a miséria legendária da
região. Assim, tudo em sua volta parece estar morrendo, desmoronando” [3].
Com isso, a feitura dos poemas
parece transparecer a realidade do poeta paraibano. Ele deixa a aparente
posição de vencedor e torna-se um vencido. Derrotado pela inevitável decadência
de sua terra de criação, o Engenho Pau d’Arco, vendo transformarem-se em ruínas
os locais de sua infância. Presenciando o pai doente, magoado por uma mão
sombria [4], e algum tempo depois
tendo que expressar: “Podre meu pai! A morte o olhar lhe vidra” [5]. Esses são apenas alguns elementos
que venceram Augusto, talvez existam mais, e eles devem existir, não se pode
simplificar a vida de um sujeito desse modo. Mas, por enquanto, convém que esses
sejam trazidos à essa dissertação.
Em segundo lugar, o desenvolvimento
literário de Augusto tem confluência com o “ambiente decadente” em que vivia. Como
estudante, tivera contato com Haeckel, Spencer e Schopenhauer. Com eles
aprendeu, respectivamente, os limites da ciência, que não pode penetrar os
mistérios; que as moneras originaram todos os seres; e o pessimismo que envolve
o ser humano neste mundo cheio de dores. Assimilara o cientificismo e o
materialismo para sua poesia, aos poucos deixava de lado o romantismo e o
simbolismo, e criava seu próprio estilo. Dado isso, o estilo de escrita parece
também denunciar o movimento de vencedor à vencido, exercido por Augusto.
O primeiro soneto, Vencedor (1902) está
inserido na primeira fase do poeta, de 1901 a 1905 [6]. Nessa fase, ele “verseja
incipientemente como simbolista, misturando influências dessa escola com
resquícios românticos e parnasianos” [7]. O caráter idealista,
jovial e esperançoso desse poema demonstra tais coisas.
Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e
doma
Meu coração —
estranho carniceiro!
Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de
Roma.
E qual mais pronto, e qual mais
presto assoma,
Nenhum pôde domar o
prisioneiro.
Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por
fim, veio um atleta,
Vieram todos, por fim; ao todo, uns
cem...
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um
coração de poeta! [8]
Já os outros – Psicologia de um
vencido e Vencido – se situam na segunda fase da poesia anjosiana,
de 1905-6 à 1910. Nessa fase, Augusto já enxerga o mundo sob a lente do
cientificismo e do pessimismo schopenhaueriano. Não só isso, em 1905, morre seu
pai; e em 1910 o Engenho Pau d’Arco entra em falência e é hipotecado. Augusto,
nessa etapa, contempla de perto a decadência dos seus. Ele encarna o vencido, e
parece admitir isso, deixando à mostra a psicologia do mesmo.
Análise
diacrônica: Ordem literária
Ao contrário da ordem de composição,
Augusto dispôs os sonetos do tríptico em movimento ascendente, isto é, do
vencido ao vencedor. No livro Eu (1912), o poeta dispôs primeiro Psicologia
de um vencido (1909).
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da
infância,
A
influência má dos signos do zodíaco.
Produndissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa
repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à
ânsia
Que
se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme – este operário das
ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come,
e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para
roê-los,
E há de deixar-me apenas os
cabelos,
Na
frialdade inorgânica da terra! [9]
Em seguida, vem o soneto Vencido:
No auge de atordoadora e ávida
sanha
Leu tudo, desde o mais prístino
mito,
por exemplo: o do boi Ápis do Egito
Ao
velho Niebelungen da Alemanha.
Acometido de uma febre estranha
Sem o escândalo fônico de um grito,
mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou
os cabelos na montanha!
Desceu depois à gleba mais
bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da
farda
À
vontade do vômito plebeu...
E ao vir-lhe o cuspo diário à boca
fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu. [10]
E por fim, o poema Vencedor – já exposto
acima. O caminho do Eu lírico na disposição literária é de anti-decadência.
Psicologia de um vencido, mostra as fraquezas e os receios que se passam na
mente do Eu, autodenominado filho do carbono e do amoníaco, portanto, pura
matéria. Matéria esta cujo principal receio é o verme que espreita seus olhos
como alimento. Nesse momento se apresenta a decadência do Eu, não se trata de
sua morte, mas da terrível possibilidade dela. O pessimismo nesse soneto
demonstra a alma profunda do Eu do segundo poema, Vencido.
Em Vencido, nota-se uma escalada do
fundo da hipocondria profundíssima, que o Eu expressa em sua psicologia. Ele procura
ler com a avidez, isto é, quase que com desespero, todas as fontes de
sabedoria, os mitos de todas as partes do mundo – do Egito à Alemanha. Além
disso, o vencido está acometido por uma misteriosa febre e um estranho silêncio
que não lhe deixa gritar sonoramente. Ele mergulha no infinito silêncio dos
condenados.
O vencido já demonstra luta e
atividade, pois, se no fim de Psicologia de um vencido o verme era o agente que
o deixaria, passivamente, na frialdade da terra. Agora, ele mesmo toma atitude
e ao vir a gosma salivar à boca, pensava cuspir “na célula infeliz de onde
nasceu’, ou seja, na terra fria na qual jazia. O vencido deseja lutar contra o
pó ao qual retornará.
Os dois primeiros sonetos do
tríptico são degraus para chegar ao último. Portanto, em Vencedor, o Eu
descobre quem é capaz de vencer seus receios, suas dúvidas, suas hipocondrias e
febres estranhas: seu próprio coração. Não o órgão bombeador de sangue, pois
este também o verme há de roê-lo; mas aquele ‘órgão’ espiritual do qual brotam
a vitalidade e vivacidade das sensações, emoções e criações do homem.
O Eu, depressivo e melancólico do
começo, tem um lampejo de misticismo e espiritualidade. Descobre que ninguém
pode domar seu coração; que ele é o vencedor do qual nem escuridão e rutilância
de sua psicologia, nem as rútilas espadas dos guerreiros podem obter vitória
sobre ele. No último soneto do tríptico a luz da vitória alcança o vencido,
pois no fundo ele se descobre vencedor. E indo além, em relação ao caminho de
ascensão do vencido ao vencedor a esperança é esta: que sobre mim, filho do
carbono e do amoníaco, triunfe meu coração.
Psicologia de um vencido
e Vencido exalam a doença, o desespero e a mente atordoada e sôfrega do
Eu. Vencedor é um poema de jovial vigor – talvez devido o período em que foi
composto – em função disso, ele é esperançoso, rijo e corajoso. Tudo isso
gravitando em torno do coração, porque ninguém doma um coração de poeta!
“Coração, instinto e princípios” [11]. É pelo coração indomável
que o Eu pode alcançar o Nirvana, a tranquilidade de sua alma, a aceitação
estoica da finitude e a budista compreensão da profunda unidade dos seres
vivos. No alheamento da obscura forma humana, no desencarceramento da matéria,
isto é, num lampejo espiritual, o poeta encontra seu sincero Nirvana [12].
Considerações finais
A vida de um sujeito – de um artista – inevitavelmente aparece em sua obra, não é diferente com Augusto dos Anjos. Suas experiências estão sutilmente imiscuídas nas profundas entrelinhas dos versos do Eu. Não é uma biografia, pois não seria possível dizer sua obra nesses termos, mas é uma maneira racionalizada de dizer o que queria que tivesse sido sua vida.
Do vencido ao vencedor, assim ele
organizou o tríptico no Eu, porque não pôde realizar em sua vida.
Sentia-se vencido, na materialidade; porém, podia ser vencedor em seu espírito
– define-se por idealismo, mas também por esperança. Isso parece ser um pouco
difícil de incutir ao poeta de Sapé, posto que, “a sua posição genuína é a de
um solitário, para quem não havia amanhã, nem esperança” [13]. Mas, o desesperançado,
na busca pela esperança, encontra no desespero sua esperança única. Augusto,
fez do desespero pelo nirvana sua esperança de vitória. Augusto fora um
vencido, mas jamais um derrotado.
O poeta paraibano ensina que a luta é a
existência nesta terra de ingratidão, onde ninguém assiste o formidável enterro
de sua última quimera [14]. Ele almejava a vitória
sobre a dura vida social, à ingrata crítica literária de sua época, ao tempo
que consumiu sua infância e os momentos saudosos no engenho Pau d’Arco. Ele
queria vencer sobre os mistérios, acentuadamente os da morte. E para vencer um
mistério, somente um mistério maior ainda, e o coração é mistério gigantesco,
como afirma Pascal: o coração tem suas razões, que a razão não conhece [15]. Eis o vencedor!
[1] BARBOSA,
Francisco de Assis. Edição crítica. in. COUTINHO, Afrânio. Augusto dos Anjos:
textos críticos. Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1973. pp. 67-94
[2] cf. REGO, José
Lins. Augusto dos Anjos e o engenho Pau d’Arco. in. COUTINHO, Afrânio. Augusto
dos Anjos: textos críticos. Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1973.
pp. 205-214.
[3] GULLAR, Ferreira.
Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina. p. 16. disponível em: https://pt.scribd.com/document/394804883/GULLAR-Ferreira-Augusto-Dos-Anjos-Ou-Vida-e-Morte-Nordestina - acesso em 15
nov 2021.
[4] cf. Sonetos (A
meu pai doente). in: ANJOS, Augusto dos. Eu. São Paulo, Hedra, 2012.
p. 142.
[5] Sonetos (A meu
pai morto). Ibid. p. 143.
[6] cf. GULLAR,
Ferreira. Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina. p. 55-68.
disponível em: https://pt.scribd.com/document/394804883/GULLAR-Ferreira-Augusto-Dos-Anjos-Ou-Vida-e-Morte-Nordestina - acesso em 15
nov 2021
[7] Ibidem. p. 55.
[8] Vencedor. in:
ANJOS, Augusto dos. Eu. São Paulo, Hedra, 2012. p. 154.
[9] Psicologia de
um vencido. in: ANJOS, Augusto dos. Eu. São Paulo, Hedra, 2012. p.
72.
[10] Vencido. Ibidem.
p. 146.
[11] PASCAL,
Blaise. Pensamentos. São Paulo: Nova
cultural, 1999 (os Pensadores). p. 104.
[12] cf. Meu Nirvana.
in ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv.00054a.pdf - acesso 17 nov
2021.
[13] LINS, Álvaro.
Augusto dos Anjos: poeta moderno. in. COUTINHO, Afrânio. Augusto dos Anjos:
textos críticos. Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1973. p. 188
[14] Versos
íntimos. in: ANJOS, Augusto dos. Eu. São Paulo, Hedra, 2012. p. 153.
[15] PASCAL,
Blaise. Pensamentos. São Paulo: Nova
cultural, 1999 (os Pensadores). p. 104.
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