Bruno R. Sales
Introdução
Uma imagem de um crucificado
esculpida por algum santeiro, cujos traços, imperfeitos deixam membros
superiores maiores que os inferiores. Seu rosto se assemelha àquele estilo
românico arcaico do séc. XI. Os olhos cerrados, afirmam que a vida já se foi. As
feridas se apresentam como pontos vermelhos nos pés, joelhos, lado, mãos e
testa. A assimetria deixa a figura com aspecto ainda mais sofrido. Os pregos,
pedacinhos de madeira, prendem a figura de um homem a uma cruz preta com adornos
em latão dourado nas pontas e um esplendor, do mesmo material, atrás de si. A
representação semi-glorificada de um ato assassínio. Olha-se para essa obra e
se diz: “como é bela!”.
O sentimento de beleza, suscitado
num cristão, por um crucifixo, não é de modo algum, mero sentir estético, mas
uma demonstração do sentimento religioso que se manifesta ao vê-lo. De tal
modo, a estética divina produzida pelo Cristianismo não se caracteriza
puramente como uma categoria filosófica, ela é, antes de tudo, teológica. Nesses
termos, isso significa que a “estetificação” do belo ainda não ocorreu, isto é,
não transparece na experiência da beleza aquela neutralidade, que beira a
indiferença, diante da representação de algo que diz sobre sua fé. Isso
acontece, de acordo com Hans Balthasar, devido o vínculo entre o belo e a
Revelação cristã[1].
Posto que se trata de uma
experiência religiosa – de cunho predominantemente teológico – a estética da
figura de Jesus foi vista e relida a partir dos aportes da teologia cristã.
Considerando isso, poderá perceber que, à medida das mudanças nas discussões teológicas,
muda-se também a maneira de representar o Cristo. Isso acontece por duas
razões: 1) para manifestar à comunidade dos fieis a mensagem da teologia de
então; 2) para legitimar a forma de visão teológica que se quer demonstrar,
pois, a representação artística de alguma parte da doutrina cristã, de certo
modo, implica a tentativa de validação da mesma – basta ver os exemplos da
Idade Média ou Renascimento, que recorriam a arte como forma de legitimar os
dogmas e crenças daquela época.
No Cristianismo Antigo, também essa
condição teológica foi motivadora de como se deveria enxergar e representar a
figura de Jesus Cristo. Não obstante isso, em determinado momento de transição,
duas visões teológicas se encontraram. Uma se referia à forma inicial que os
cristãos aplicaram a Jesus: o bom pastor [sinal do ressuscitado]. A outra
refere-se à uma visão um pouco mais tardia – mas não tanto – que é a do
crucificado. Qual delas deveria prevalecer? Como os cristãos aplicaram o
conceito do Belo à figura de Jesus?
Análise
terminológica
Antes de iniciar a discussão, para se
entender melhor os conceitos aplicados pelo Cristianismo ao debate
teológico-estético sobre Jesus Cristo, torna-se importante dar uma rápida
olhada em duas perícopes da Bíblia cristã. Os versículos, que se encontram em
Isaías 53,2 e o outro João 10,11, são a demonstração das duas formas de visão,
já aludidas acima: o servo sofredor e o bom pastor, vejamos respectivamente.
Isaías 53,2 |
||
Septuaginta
Vulgata
Trad. Jerusalém |
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οὐκ
ἔστιν εἶδοϛ αὐτῷ δόξα· καὶ εἴδομεν αὐτόν, καὶ οὐκ εἶχεν εἶδοϛ οὐδὲ κάλλοϛ [2] [não
tinha, na aparência dele mesmo, esplendor. Nem voltamos os olhos para ele
mesmo, também não tinha aparência exterior nem mesmo beleza. (Trad. livre)] |
non
est species ei neque decor et vidimus eum et non erat aspectus et
desideravimus eum [3]. [não tem formosura, nem é belo e o vimos, e
não tinha aparência e o desejamos. (Trad. livre)] |
não
tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair nosso olhar, nem formosura
capaz de nos deleitar [4]. |
Os termos usados pelo autor no livro
de Isaías tem uma conotação de aparência pessoal. A descrição que ele faz é de
um homem desfigurado em sua carne, seu corpo. Isso se torna mais evidente
quando se toma a Septuaginta com a expressão εἶδοϛ αὐτῷ cuja tradução é “na
aparência dele mesmo” [5]. Também na Vulgata se
salienta, em menor intensidade, o sentido de aparência exterior com os termos species
e aspectus.
Entretanto, os termos mais relevantes
para a discussão trazida aqui são κάλλοϛ e decor. Ambos designam beleza
ou belo. É preciso esclarecer que a terminologia latina é variada, pois, assim
como decor, species, também pode ser traduzido como belo,
contudo, estes parecem estar subordinados a um outro termo de maior abrangência
de significância que é pulcher, cuja significação se aproxima da
categoria do Belo elaborada pela metafísica grega. Em função disso, o termo
grego κάλλοϛ tem maior peso na discussão, posto que já carrega esse significado
metafísico em seu cerne conceitual.
O κάλλοϛ está ligado à filosofia
platônica do Belo ideal. Para Platão, as coisas belas na imanência eram apenas representações
imperfeitas daquele Belo perfeito que permanecia na luminosidade do Mundo das
Ideias. Assim, podemos incutir no texto bíblico que esse homem, apresentado por
Isaías, era considerado imperfeito, tanto no corpo, quanto no espírito – posto
o caráter metafísico de κάλλοϛ.
Na leitura cristã dessa perícope, o
servo sofredor é o Cristo que sofre no calvário. É, portanto, a aparência
sangrenta de Jesus, em suas dilacerações corporais, e seu espírito que, para os
seus acusadores era imperfeito, pois não seguia as leis judaicas estabelecidas.
Mas, aqui, permanece em realce, a aparência de Jesus como a forma mais profunda
do sofrimento. A iconografia do servo sofredor é a imagem do horror diante da
morte cruel e do sofrimento humano em geral. De fato, nisso não há beleza.
Por muito tempo os primeiros
cristãos relutaram em representar Jesus em seus sofrimentos. Primeiro, porque
era um escárnio utilizado pelos pagãos para desmerecer o Cristianismo [6]; depois, o acento da fé
cristã dos primeiros séculos se conservava na vida eterna e na esperança do
retorno do Cristo triunfante – conforme as várias crenças milenaristas desse
período. Por essa razão, o outro versículo está relacionado diretamente com a
estética produzida pelos cristãos esperançosos e sedentos da vida eterna: é a
imagem do Cristo pastor.
João 10,11 |
||
Novo Testamento - grego Vulgata Trad. Jerusalém |
||
Ἐγώ εἰμι ὁ ποιμὴν ὁ καλὸϛ [7] [Eu
sou o pastor belo. (Trad. livre)] |
Ego
sum pastor bonus |
Eu
sou o bom pastor |
O κάλλοϛ se apresenta novamente,
porém, dessa vez ele aparece com o caráter positivo. Enquanto em Is 53,2, o
sujeito descrito não tinha beleza; Jesus, em Jo 10,11, afirma ser ὁ ποιμὴν ὁ
καλὸϛ; portanto, não apenas o bom, mas o Belo pastor. E, já se disse,
que esse belo grego tem a conotação de perfeição. Ele é o pastor perfeito do
rebanho.
Essa forma estética do Cristo Bom
pastor foi uma das bases teológicas da nascente crença cristã, isso porque ela
estava subordinada a fé na ressurreição e na vida no Paraíso onde a Igreja
reunida – rebanho de Cristo – passaria a eternidade sob a tutela de seu Pastor
perfeito. Isso se atesta pelas inúmeras figuras do Pastor na arte paleocristã.
Desde as catacumbas de Calixto até o mausoléu de Gala Placídia.
Exemplo eloquente dessa base estética são
as diversas imagens do Kriósphoro (Κριόφορος), esculturas que, no
paganismo, representava o jovem deus Hermes carregando um cordeiro sobre os
ombros para ser sacrificado; mas para os cristãos, tornou-se imagem do Cristo
que leva suas ovelhas nos ombros para melhor cuidar delas. Outro aspecto a se
considerar, enquanto o servo sofredor, como representante do sofrimento, é
dilacerado; o Bom pastor, em sua iconografia antiga, se apresenta jovem e cheio
de vigor – imagem teológica da vida eterna.
O grego κάλλοϛ indica o acento
metafísico. Contudo, na vulgata, a tradução desse termo ficou sendo Bonus
[Bom] e seu significado muda de foco. Enquanto o grego se aproxima das ideias
platônicas, o termo latino está mais perto das ideias estoicas de Cícero e da Romanitas
do Império Romano, para o qual, assim como para alguns outros filósofos gregos
anteriores a ele, o Belo está relacionado com o Bem e a boa ação. Assim sendo,
mais que uma categoria estética o Bonus quer fazer aparecer o caráter
ético do agir de Cristo. Trata-se, agora, da bela ação do Bom pastor com todo o
cuidado em salvar cada ovelha que lhe pertence.
Resumidamente,
tem-se a seguinte situação: uma tensão entre o servo sofredor, imagem do
sofrimento [pode-se dizer, da feiúra]; e a imagem do Bom Pastor, perfeito,
jovem e belo. E outra tensão sobre o Belo estético, física e metafisicamente, e
o belo agir ético da ação pragmática.
O
Belo tensionado
Para resolver as tensões que se
colocam nesse contexto, basta aceitá-las como elas são, mas levando em conta o
relaxamento delas. Dito de outro modo, o equilíbrio entre tensão e relaxamento
é condição propícia para harmonizar as diferentes visões estético-teológicas.
De fato, o Cristianismo Antigo soube equilibrar, teologicamente, as dimensões,
aparentemente discordantes, do Servo sofredor e o Bom Pastor; a imagem do
sofrimento e do desespero, com a imagem da paz e da esperança. Ao dar
equilíbrio teológico, deu-lhe também ao estético e o ético.
No estético, a tensão proporciona o
choque necessário diante da beleza. Esta é a ideia de um espanto que afasta o
sujeito, mas que, após uma contemplação [relaxamento] um pouco distanciada,
volta-se para a beleza mais uma vez. Balthasar afirma essa tensão ao explicar
que
ao belo pertence a
tensão e o relaxamento dessa, e a lúdica superação dos contrários, o belo baseia
seu próprio âmbito e postula para si, necessariamente, seu contrário. Para o
elevado, postula o baixo; para nobre, o ridículo e grotesco, mais ainda, o terrível
e o feio, a fim de assinalar o lugar que ocupa no conjunto e tirar de sua
presença janelas superiores [8].
O fascinosum e o tremendum
entram em concordância e já não é possível ver um sem outro. A beleza
paradisíaca, atestada pelos primeiros cristãos, na representação jovial do
Pastor ressuscitado, somente tem sentido pelas dilacerações sangrentas da
figura do servo sofredor. E vice-e-versa. No que diz respeito à teologia
cristã, o primeiro representa a divindade – κάλλοϛ (Belo = perfeito) –, o
segundo a humanidade sofrida assumida pelo Cristo – οὐ κάλλοϛ (sem beleza =
imperfeita). No Cristianismo, portanto, há um equilíbrio entre as duas
naturezas do Filho de Deus, expressa em sua estética.
Considerando isso, a estética
teológica toma para si o meio termo entre o imanente e o transcendente. A
figura (representada) de Jesus se torna ponte para a experiência transcendental
a partir da imanência dos traços materiais de uma obra de arte. Na imagem –
esculpida ou pintada – não se enxerga meramente Jesus, mas contempla-se todo um
conjunto de ideias teológicas que pretendem ser passadas através dela. A
aparência (εἶδοϛ) contemplada, naquilo que Walter Benjamin mencionara como Aura
da obra de arte, projeta o contemplante para a dimensão do belo (κάλλοϛ).
“O olhar cristão é pleno de fé e de
sua contemplação; a luz acesa nele faz brilhar também no objeto, a profundeza
sobrenatural” [9].
Nessas circunstâncias, o Cristianismo Antigo aprendeu que, embora a arte não
capture a beleza divina, pode ser transmitida através da experiência estética
vivida teologicamente. Um mistério invisível, todavia, representado nas
pinturas sobre a vida de Jesus, em sua iconografia, seja como jovem ou como
sofredor, todas elas passam pela tensão da fascinante beleza e o tremendo
mistério de Deus.
* * *
[1] cf. BALTHASAR, H.
U. Revelación y Belleza. in: BALTHASAR, H. U. Ensayos teológicos I:
Verbum caro. Madrid, Cristandad, 1962. disponível em: https://pt.scribd.com/doc/250928775/Balthasar-Revelac-a-o-e-Beleza-Palavra-e-Sile-ncio-Verbum-Caro - acesso em 12
jan 2022.
[2] SEPTUAGINTA.
disponível in: https://pt.scribd.com/document/545080573/Biblia-LXX-Septuaginta-Texto-Griego - acesso em 10
jan 2022.
[3] BIBLIA SACRA: Iuxta vulgatam
versionis. Deutsche bibelgesellschaft; Sociedade bíblica do Brasil, 2011.
[4] BÍBLIA de
Jerusalém. Nov. ed. ver. ampl. 13ª impr. São Paulo, Paulus, 2019.
[5] DICIONÁRIO
BÍBLICO STRONG – GREGO. James Strong. disponível in: https://pt.scribd.com/document/399404226/Dicionario-Biblico-Strong-Grego-James-Strong - acesso 12 jan
2022.
[6] Basta ver o exemplo
de um pagão que, para desmerecer a fé de um cristão, desenhou um homem com
cabeça de asno crucificado e ao lado um outro adorando-o, e a inscrição: “Alexamenos
adora seu deus”.
[7] NOVO
TESTAMENTO interlinear analítico – grego-português. São Paulo, Cultura
cristã, 2008.
[8] cf. BALTHASAR, H.
U. Revelación y Belleza. in: BALTHASAR, H. U. Ensayos teológicos I:
Verbum caro. Madrid, Cristandad, 1962. disponível em: https://pt.scribd.com/doc/250928775/Balthasar-Revelac-a-o-e-Beleza-Palavra-e-Sile-ncio-Verbum-Caro - acesso em 12
jan 2022.
[9] BALTHASAR, H. U. A oração contemplativa. São Paulo,
Paulus, 2019. (Coleção Fides Quaerens)
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