Bruno R. Sales
De
maneira prévia, é preciso estabelecer o objetivo do presente texto, a saber:
dissertar sobre o desenvolvimento do ser humano em relação ao paradigma
histórico (que aqui engloba economia e tecnologia) no qual ele está inserido.
Contudo, o texto se aterá, em especial, à modernidade e contemporaneidade, de
modo que, apenas se pincelará as temáticas antigas e medievais. No fim, será
tratada a questão pós-verdade e pós-modernidade e suas relações com o ser
humano.
Antiguidade
e medievo
A Antiguidade e a Idade Média
possuem, mutatis mutandis, o mesmo pano de fundo: a religião. E por meio
desta, se tinha a visão de mundo tanto subjetiva, quanto intersubjetiva. No
entanto, a diferenciação das formas religiosas dessas épocas desemboca,
evidentemente, em formas históricas diferentes de percepção do homem e seu
lugar no mundo.
Para os antigos de cultura
greco-romana (salvas algumas exceções), o homem era um ser que devia seguir seu
destino. Este último era tido como “a conexão das coisas entre si através da
eternidade”[1].
De modo que, tudo quanto ocorresse com o homem devia-se ao Destino – conjugado
à Fortuna – como atesta Aristides:
Mas, penso, dos
problemas em que nos encontramos e se vivermos pior ou melhor culpamos a
divindade do destino e da fortuna, e, por Zeus, se quiser, acrescente que
devemos também culpar a nós mesmos. Pois isso não acontece representar qualquer
dano ao argumento. Mas para aqueles que nos prestaram um serviço em nosso
nascimento e por meio dos quais viemos pela primeira vez à luz, acreditamos que
devemos ser gratos em primeiro lugar depois dos deuses, que ainda estão à
frente deles [2].
Vê-se daí que o lugar que o homem
ocupa, seja num nível particular ou público, social ou mesmo de natureza, se
deve ao destino tido como divindade. Assim, se o indivíduo fosse um guerreiro,
assim o fez os deuses e quis a fortuna que fosse esse seu destino, do mesmo
modo se ele fosse um mendigo. Cada qual deveria permanecer em seu próprio
caminho já traçado.
No Medievo, porém, temos o fator
cristão que define toda uma sociedade e, consequentemente, o homem que a
compõe. Nessa fase, o homem é uma criatura de Deus. Criado por desinteressado
amor divino, ao ser humano cabe ser grato pelas dádivas recebidas de seu
Criador – e também do redentor, considerando o fator cristológico. Dessa
maneira, o destino dá lugar à aceitação do seu lugar como graça divina. Assim
esclarece Tomás de Aquino:
Portanto, deve-se dizer que as
coisas que aqui acontecem acidentalmente, tanto na natureza como entre os
homens, reduzem-se a uma causa preordenante, a divina providência (S. Th. I, q.
116, a.1, rep.) [3].
As duas visões do homem e seu lugar
no mundo são religiosas, pois o paradigma que então vigorava era o espírito
religioso. Contudo, com o desenvolvimento do método científico, das
matemáticas, as teorias seculares sobre a política e o advento do racionalismo
cartesiano, a humanidade ingressa numa nova fase: a modernidade.
A
modernidade
A
modernidade, mais que uma época histórica, foi uma forma de exposição do
pensamento racional e de seu gradual domínio sobre as formas da atuação humana,
gerando uma racionalização dos diversos âmbitos da vida. Com isso, o ser humano
assume um lugar de protagonista no mundo, baseado na ideia de que, por sua
razão, ele pode chegar onde quiser. A partir daqui, destino e graça divina
começam a perder espaço.
Com
o início da modernização (séc. XVI-XVII) vieram os avanços tecnológicos e a
organização societária viu-se em gradual mudança, a burguesia dava seus
primeiros passos. Com isso, o homem tem um desenvolvimento paralelo à economia
e a técnica. Desse modo, o ser humano inicia o processo de autodeterminação de
seu lugar na sociedade moderna por meio de seu trabalho e de seu lucro.
A thecne, na
sua forma da tecnologia moderna, transformou-se num impulso infinito de nossa
espécie além de mesma, seu empreendimento mais significativo, cujo progresso
permanente e autotranscendente até coisas sempre maiores tende a ser visto como
como a vocação do homem, e cujo sucesso de controle máximo sobre as coisas e
sobre si mesmo aparece como consumação de seu destino [4].
Já
no séc. XVIII e XIX, ciência e técnica se tornam instrumentos motivadores do
progresso humano. Elas adquirem, por assim dizer, um aspecto messiânico que
desemboca numa escatologia da esperança do homem de desenvolver todas as suas
potencialidades para o bem da humanidade e da sociedade. No entanto, lamentavelmente,
o avanço tecnológico e científico favoreceu também em massacres e guerras. O
mais significativo exemplo que se tem é Auschwitz.
A dimensão técnica
própria de Auschwitz indica outras coisas além de vê-la genericamente, como uma
manifestação destrutiva próprias da “idade da técnica”. Afirmar que o
assassinato de milhões de pessoas se inscreve numa dimensão técnica significa,
de fato, antes de tudo tomar consciência do fato de que os nazistas tiverem que
desenvolver, através de uma série de tentativas, uma técnica capaz de efetuar
uma tal aniquilação; em outras palavras, é preciso ter consciência de que: “o
assassinato de milhões de seres humanos foi colocado e resolvido como um
problema técnico [5].
Essa
realidade paradoxal progresso-retrocesso ocasionou numa dura perda de sentidos
e de valores que antes haviam adquirido posto de imprescindíveis. Os
acontecimentos violentos ocorridos com o auxílio da técnica e da ciência
puseram em xeque as esperanças e utopias dos modernos. Para alguns, os eventos
históricos do séc. XX, por assim dizer, foram os créditos no fim do filme da modernidade.
De tal modo, já na segunda metade do século XX, ouvia-se o rumor da
pós-modernidade.
Pós-verdade
e Pós-modernidade
As concepções pós-modernas são sobrepostas
à ideia de “uma mudança na qual tenderia a reconhecer-se o homem tardo-moderno,
no seu esforço de dar um nome e um rosto à especificidade da própria condição e
ao difuso sentido de “estranheza” ou de “distância” das ideias-força dos
últimos séculos” [6].
De tal modo, essa estranheza e distância do homem são em relação às forças motrizes
elencadas e sustentadas no período moderno, ou seja, os valores levantados pela
a Razão Iluminista. A crise se dá quando o indivíduo não se configura mais
dentro desses valores modernos, ou mesmos em pré-modernos, e busca um
reconhecimento, que poderia ser dito de melhor forma como ressignificação, do
humano, que não encontra sua identidade na teleologia da história, nem no
pensamento filosófico ocidental dos últimos séculos. Em função disso, um novo
impulso intelectual pôs-se em marcha para desvendar o que é o homem e suas
relações sociais e intelectivas, a partir de novos parâmetros que estão além
dos valores modernos.
Com o Projeto de Modernidade tido como
obsoleto, não existem planos, ao menos no sentido de uma organização política,
social e filosófica com pretensão de universalidade. O pluralismo, portanto,
centra-se no âmbito do subjetivismo, que engendra o relativismo, de tal maneira
que, fatos e verdades dependem do ponto de vista de cada indivíduo; o que,
aparentemente, denota que todos têm razão ao mesmo tempo em que ninguém está
certo. Com isso a pretensão dum princípio racional de validade universal [que
antes havia sido Deus, e após o Esclarecimento, a própria Razão] perde força e
as conveniências fazem parte de um modelo de racionalidade fragmentária; numa
disseminação de verdades individuais absolutas, que podem ou não ter a
capacidade de comunicar-se entre si. Assim surgem os moldes da pós-verdade.
François Lyotard, define a pós-modernidade
como “incredulidade com relação às metanarrativas” [7]. De tal forma, se já não
existem metanarrativas, isto é, um fundamento unitário e universal que orienta
as ações, o indivíduo fica à mercê de seu próprio discurso, dessa maneira,
“cada forma de discurso é forçada a gerar o tipo de autoridade que ela puder
[…] assim, longe de afirmar definitivamente como as coisas são, somente
opiniões podem ser oferecidas” [8]. Assim, o conhecimento é
reduzido a um conjunto de saberes e sentimentos que garante a possibilidade de
o indivíduo emitir os mais variados juízos; por exemplo, o que é bom ou mal.
Esse esboço geral da ideia de
pós-modernidade oferece uma oportunidade de verificar como ela influencia no
indivíduo. Pode-se dizer que ele não encontra uma base firme para apoiar-se,
por isso, o niilismo, o nada, começa a fazer sentido frente a um mundo fluido e
oscilante. “A nova situação que se apregoa é aquela da carência de fundamento,
onde não se encontra sentido nem no “além” aquilo que vem depois, nem no “aquém”,
aqui e agora é semelhante àquela circunstância do viajante que carece de uma
bússola” [9]. O homem se encontra
perdido e desorientado, e busca saber sobre si mediante orientações
perspectivistas.
Referente ao pós-verdade, considerara-se
que o ser humano nada possui da verdade, senão meras interpretações e
perspectivas que o isolam em sua visão de mundo subjetiva, de modo que, tomando
a situação dessa forma, o mundo objetivo, ou fatos objetivos, pouca ou nenhuma
valia possuem nas relações humanas dentro e fora do âmbito pessoal.
Nesse ambiente surge, então, a ideia
do make yourself. Em outros termos, com o desencanto da razão e da
religião os sujeitos são estimulados a uma noção de fazer-se a si mesmo. Eles
precisam se produzir a cada dia através de suas escolhas, eles mesmos se
constroem, num sentido de que eles por si tratam de querer dar sentido à sua
existência. Seria, a título de exemplo, a suma de Albert Camus: “A própria luta
para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar
Sísifo feliz” [10].
[1] SÉRVIO, Mauro Honorato.
Fragmentos. In: CÍCERO, Marco Túlio. Sobre o destino. São Paulo, Nova
Alexandria, 2001. p.37.
[2] ARISTIDES, Elio. Discursos
(II). Madrid, Editorial Gredos, 1997. p. 126 .(Biblioteca Clasica Gredos,
233). Disponível in: https://www.mediafire.com/file/jj7y4vck034ogw3/ELIO_AR%25C3%2583%25C2%258DSTIDES%252C_Discursos_II.pdf/file.
Acesso 15 mar. 2021.
[3] AQUINO, Tomás. Suma Teológica
(II). São Paulo, Edições Loyola, 2005.
[4] JONAS, Hans. Ensaios filosóficos:
da crença antiga ao homem tecnológico. São Paulo, Paulus, 2017. p. 35.
[5] STEFANI, Piero. Pensar e crer
depois de Auschwitz: Panorama. In. Deus na filosofia do século XX. Org:
Giorgio Penzo/ Rosino Gibellini. Loyola, 1993. p. 619-620.
[6] TEIXEIRA, Evilázio B. Aventura
pós-moderna e sua sombra. São Paulo, Paulus, 2005. p. 81. (Coleção
Filosofia)
[7] LYOTARD apud LYON, David. Pós-modernidade.
São Paulo, Paulus, 1998. p. 24. (Coleção Temas da Atualidade)
[8] Ibidem. p. 25.
[9] TEIXEIRA, Evilázio B. Aventura
pós-moderna e sua sombra. São Paulo, Paulus, 2005. p. 86. (Coleção
Filosofia)
[10] CAMUS, Albert. O
mito de Sísifo. Rio de Janeiro, Record, 2020. p. 198.
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