domingo, 20 de agosto de 2023

HUMANIDADE: DESTINO, PROVIDÊNCIA OU MAKE YOURSELF?

 


                                                                                                                    Bruno R. Sales

De maneira prévia, é preciso estabelecer o objetivo do presente texto, a saber: dissertar sobre o desenvolvimento do ser humano em relação ao paradigma histórico (que aqui engloba economia e tecnologia) no qual ele está inserido. Contudo, o texto se aterá, em especial, à modernidade e contemporaneidade, de modo que, apenas se pincelará as temáticas antigas e medievais. No fim, será tratada a questão pós-verdade e pós-modernidade e suas relações com o ser humano.

Antiguidade e medievo

            A Antiguidade e a Idade Média possuem, mutatis mutandis, o mesmo pano de fundo: a religião. E por meio desta, se tinha a visão de mundo tanto subjetiva, quanto intersubjetiva. No entanto, a diferenciação das formas religiosas dessas épocas desemboca, evidentemente, em formas históricas diferentes de percepção do homem e seu lugar no mundo.

            Para os antigos de cultura greco-romana (salvas algumas exceções), o homem era um ser que devia seguir seu destino. Este último era tido como “a conexão das coisas entre si através da eternidade”[1]. De modo que, tudo quanto ocorresse com o homem devia-se ao Destino – conjugado à Fortuna – como atesta Aristides:

Mas, penso, dos problemas em que nos encontramos e se vivermos pior ou melhor culpamos a divindade do destino e da fortuna, e, por Zeus, se quiser, acrescente que devemos também culpar a nós mesmos. Pois isso não acontece representar qualquer dano ao argumento. Mas para aqueles que nos prestaram um serviço em nosso nascimento e por meio dos quais viemos pela primeira vez à luz, acreditamos que devemos ser gratos em primeiro lugar depois dos deuses, que ainda estão à frente deles [2].

            Vê-se daí que o lugar que o homem ocupa, seja num nível particular ou público, social ou mesmo de natureza, se deve ao destino tido como divindade. Assim, se o indivíduo fosse um guerreiro, assim o fez os deuses e quis a fortuna que fosse esse seu destino, do mesmo modo se ele fosse um mendigo. Cada qual deveria permanecer em seu próprio caminho já traçado.

            No Medievo, porém, temos o fator cristão que define toda uma sociedade e, consequentemente, o homem que a compõe. Nessa fase, o homem é uma criatura de Deus. Criado por desinteressado amor divino, ao ser humano cabe ser grato pelas dádivas recebidas de seu Criador – e também do redentor, considerando o fator cristológico. Dessa maneira, o destino dá lugar à aceitação do seu lugar como graça divina. Assim esclarece Tomás de Aquino:

Portanto, deve-se dizer que as coisas que aqui acontecem acidentalmente, tanto na natureza como entre os homens, reduzem-se a uma causa preordenante, a divina providência (S. Th. I, q. 116, a.1, rep.) [3].

            As duas visões do homem e seu lugar no mundo são religiosas, pois o paradigma que então vigorava era o espírito religioso. Contudo, com o desenvolvimento do método científico, das matemáticas, as teorias seculares sobre a política e o advento do racionalismo cartesiano, a humanidade ingressa numa nova fase: a modernidade.

A modernidade

            A modernidade, mais que uma época histórica, foi uma forma de exposição do pensamento racional e de seu gradual domínio sobre as formas da atuação humana, gerando uma racionalização dos diversos âmbitos da vida. Com isso, o ser humano assume um lugar de protagonista no mundo, baseado na ideia de que, por sua razão, ele pode chegar onde quiser. A partir daqui, destino e graça divina começam a perder espaço.

            Com o início da modernização (séc. XVI-XVII) vieram os avanços tecnológicos e a organização societária viu-se em gradual mudança, a burguesia dava seus primeiros passos. Com isso, o homem tem um desenvolvimento paralelo à economia e a técnica. Desse modo, o ser humano inicia o processo de autodeterminação de seu lugar na sociedade moderna por meio de seu trabalho e de seu lucro.

A thecne, na sua forma da tecnologia moderna, transformou-se num impulso infinito de nossa espécie além de mesma, seu empreendimento mais significativo, cujo progresso permanente e autotranscendente até coisas sempre maiores tende a ser visto como como a vocação do homem, e cujo sucesso de controle máximo sobre as coisas e sobre si mesmo aparece como consumação de seu destino [4].

            Já no séc. XVIII e XIX, ciência e técnica se tornam instrumentos motivadores do progresso humano. Elas adquirem, por assim dizer, um aspecto messiânico que desemboca numa escatologia da esperança do homem de desenvolver todas as suas potencialidades para o bem da humanidade e da sociedade. No entanto, lamentavelmente, o avanço tecnológico e científico favoreceu também em massacres e guerras. O mais significativo exemplo que se tem é Auschwitz.

A dimensão técnica própria de Auschwitz indica outras coisas além de vê-la genericamente, como uma manifestação destrutiva próprias da “idade da técnica”. Afirmar que o assassinato de milhões de pessoas se inscreve numa dimensão técnica significa, de fato, antes de tudo tomar consciência do fato de que os nazistas tiverem que desenvolver, através de uma série de tentativas, uma técnica capaz de efetuar uma tal aniquilação; em outras palavras, é preciso ter consciência de que: “o assassinato de milhões de seres humanos foi colocado e resolvido como um problema técnico [5].

            Essa realidade paradoxal progresso-retrocesso ocasionou numa dura perda de sentidos e de valores que antes haviam adquirido posto de imprescindíveis. Os acontecimentos violentos ocorridos com o auxílio da técnica e da ciência puseram em xeque as esperanças e utopias dos modernos. Para alguns, os eventos históricos do séc. XX, por assim dizer, foram os créditos no fim do filme da modernidade. De tal modo, já na segunda metade do século XX, ouvia-se o rumor da pós-modernidade.

Pós-verdade e Pós-modernidade

As concepções pós-modernas são sobrepostas à ideia de “uma mudança na qual tenderia a reconhecer-se o homem tardo-moderno, no seu esforço de dar um nome e um rosto à especificidade da própria condição e ao difuso sentido de “estranheza” ou de “distância” das ideias-força dos últimos séculos” [6]. De tal modo, essa estranheza e distância do homem são em relação às forças motrizes elencadas e sustentadas no período moderno, ou seja, os valores levantados pela a Razão Iluminista. A crise se dá quando o indivíduo não se configura mais dentro desses valores modernos, ou mesmos em pré-modernos, e busca um reconhecimento, que poderia ser dito de melhor forma como ressignificação, do humano, que não encontra sua identidade na teleologia da história, nem no pensamento filosófico ocidental dos últimos séculos. Em função disso, um novo impulso intelectual pôs-se em marcha para desvendar o que é o homem e suas relações sociais e intelectivas, a partir de novos parâmetros que estão além dos valores modernos.

Com o Projeto de Modernidade tido como obsoleto, não existem planos, ao menos no sentido de uma organização política, social e filosófica com pretensão de universalidade. O pluralismo, portanto, centra-se no âmbito do subjetivismo, que engendra o relativismo, de tal maneira que, fatos e verdades dependem do ponto de vista de cada indivíduo; o que, aparentemente, denota que todos têm razão ao mesmo tempo em que ninguém está certo. Com isso a pretensão dum princípio racional de validade universal [que antes havia sido Deus, e após o Esclarecimento, a própria Razão] perde força e as conveniências fazem parte de um modelo de racionalidade fragmentária; numa disseminação de verdades individuais absolutas, que podem ou não ter a capacidade de comunicar-se entre si. Assim surgem os moldes da pós-verdade.

François Lyotard, define a pós-modernidade como “incredulidade com relação às metanarrativas” [7]. De tal forma, se já não existem metanarrativas, isto é, um fundamento unitário e universal que orienta as ações, o indivíduo fica à mercê de seu próprio discurso, dessa maneira, “cada forma de discurso é forçada a gerar o tipo de autoridade que ela puder […] assim, longe de afirmar definitivamente como as coisas são, somente opiniões podem ser oferecidas” [8]. Assim, o conhecimento é reduzido a um conjunto de saberes e sentimentos que garante a possibilidade de o indivíduo emitir os mais variados juízos; por exemplo, o que é bom ou mal.

Esse esboço geral da ideia de pós-modernidade oferece uma oportunidade de verificar como ela influencia no indivíduo. Pode-se dizer que ele não encontra uma base firme para apoiar-se, por isso, o niilismo, o nada, começa a fazer sentido frente a um mundo fluido e oscilante. “A nova situação que se apregoa é aquela da carência de fundamento, onde não se encontra sentido nem no “além” aquilo que vem depois, nem no “aquém”, aqui e agora é semelhante àquela circunstância do viajante que carece de uma bússola” [9]. O homem se encontra perdido e desorientado, e busca saber sobre si mediante orientações perspectivistas.

Referente ao pós-verdade, considerara-se que o ser humano nada possui da verdade, senão meras interpretações e perspectivas que o isolam em sua visão de mundo subjetiva, de modo que, tomando a situação dessa forma, o mundo objetivo, ou fatos objetivos, pouca ou nenhuma valia possuem nas relações humanas dentro e fora do âmbito pessoal.

            Nesse ambiente surge, então, a ideia do make yourself. Em outros termos, com o desencanto da razão e da religião os sujeitos são estimulados a uma noção de fazer-se a si mesmo. Eles precisam se produzir a cada dia através de suas escolhas, eles mesmos se constroem, num sentido de que eles por si tratam de querer dar sentido à sua existência. Seria, a título de exemplo, a suma de Albert Camus: “A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz” [10].

 

 

 



[1] SÉRVIO, Mauro Honorato. Fragmentos. In: CÍCERO, Marco Túlio. Sobre o destino. São Paulo, Nova Alexandria, 2001. p.37.

[2] ARISTIDES, Elio. Discursos (II). Madrid, Editorial Gredos, 1997. p. 126 .(Biblioteca Clasica Gredos, 233). Disponível in: https://www.mediafire.com/file/jj7y4vck034ogw3/ELIO_AR%25C3%2583%25C2%258DSTIDES%252C_Discursos_II.pdf/file. Acesso 15 mar. 2021.

[3] AQUINO, Tomás. Suma Teológica (II). São Paulo, Edições Loyola, 2005.

[4] JONAS, Hans. Ensaios filosóficos: da crença antiga ao homem tecnológico. São Paulo, Paulus, 2017. p. 35.

[5] STEFANI, Piero. Pensar e crer depois de Auschwitz: Panorama. In. Deus na filosofia do século XX. Org: Giorgio Penzo/ Rosino Gibellini. Loyola, 1993. p. 619-620.

[6] TEIXEIRA, Evilázio B. Aventura pós-moderna e sua sombra. São Paulo, Paulus, 2005. p. 81. (Coleção Filosofia)

[7] LYOTARD apud LYON, David. Pós-modernidade. São Paulo, Paulus, 1998. p. 24. (Coleção Temas da Atualidade)

[8] Ibidem. p. 25.

[9] TEIXEIRA, Evilázio B. Aventura pós-moderna e sua sombra. São Paulo, Paulus, 2005. p. 86. (Coleção Filosofia)

[10] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro, Record, 2020. p. 198.

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