sábado, 9 de setembro de 2023

AS TEORIAS POLÍTICAS DE AGOSTINHO DE HIPONA E TOMÁS DE AQUINO: DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS

 

Bruno R. Sales

Para entender a ideia de ordem social de Agostinho se faz necessário olhar seu pensamento acerca da moralidade, pois, em sua teoria “a ordem social não é senão um prolongamento da ordem moral” [1]. E para ele, o reto direcionamento do amor é o que constitui uma vida moral perfeita, uma vez que, do amor advém todos os benefícios de uma vida bem regulada e justa.

Sendo, portanto, o amor o cerne da moral, e um ato essencial do homem, é o primeiro elemento para iniciar uma comunidade, isto porque para Agostinho o amor é um ânimo cheio de anseios comunitários, e cujo, teor deve ser direcionado para outrem, pois, se aplicado a si próprio configura-se em impiedade. Deste modo, toda sociedade implica em um amor comum que almeja também algo comum. Assim, Agostinho põe como primícias de sua política a Caritas. No entanto, ele deixa bem específico que o primeiro amor deve-se a Deus, que, por conseguinte, será transformado em amor aos homens, dado que, “o homem que tem amor a Deus, há de tê-lo também a seus semelhantes. Ama-os como a si mesmo, por consideração a Deus”[2].

Tendo esboçado o princípio da teoria política do bispo hiponense, tratar-se-á agora de seu corpo teórico. Agostinho desenvolve seu pensamento político em sua obra “A Cidade de Deus contra os pagãos”, em cuja, ele trata de duas cidades diferentes, a saber: a Cidade de Deus e a Cidade dos homens. Apesar desta distinção já ser evidente nas Sagradas Escrituras, com Agostinho ela toma uma evidência mais ampla, abrangendo uma parte da história religiosa da humanidade. Evidentemente, tais Cidades não devem ser compreendidas como sendo corporações visíveis, ou separadas por barreiras espaço-temporais; são, na realidade, duas comunidades que divergem entre si por suas aspirações mentais e morais, e estes anseios são definidos pela essência da vida do homem - caritas.

O preceito de caritas é, pois, preponderante para a origem das cidades conforme o próprio Agostinho explana:

Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor de si levado até o desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado até o desprezo de si, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória de Deus, testemunha de sua consciência... Aquela ama sua própria força em seus potentados... os homens não buscaram senão os bens do corpo... Na Cidade de Deus, pelo contrário, não há sabedoria humana, mas piedade, que funda o culto legítimo ao verdadeiro Deus, à espera de prêmio na sociedade dos santos, de homens e de anjos. (Cidade de Deus, liber XIV, 28.)

O amor, para Agostinho, é súmula de sua proposição, como já foi exposto, por isso é ele quem determina em qual Cidade está o indivíduo. Quando o homem, por sua própria inclinação volta-se totalmente em ato de amor as coisas denominadas terrenas, ele está imerso na cidade dos homens; porém, quando fazendo uso equilibrado de seu amor pelos domínios temporais, e utilizando-se deles como instrumentos para sua elevação até a cidade de Deus, tal homem já não reside na cidade anterior, mas caminha para lugar onde o amor a Deus é o único preceito imediato, pois, “o uso das coisas temporais relaciona-se, na terra, com a obtenção da paz celeste” (Cidade de Deus, liber XIX, 14).

Os citadinos de ambas as cidades se confundem materialmente entre si, porém, sua elevação espiritual diferencia-se, e ainda mais, quando perpetrando eles mutuamente no uso das coisas temporais buscam fins divergentes, daí mais uma das razões de suas diferenças.

Tomás de Aquino – seguindo e aprofundando Aristóteles – aborda a justiça como virtude e como valor social, pois é princípio de retidão para os indivíduos, para as relações e para as instituições da sociedade. Tomás propõe a justiça como princípio para uma vida social adequada entre os homens, isto ele retira de suas grandes fontes: teologia e a filosofia. Desta maneira, evocando Aristóteles com a ideia de koinonia sendo o princípio de amizade e germe da sociedade, e trazendo juntamente a ideia de koinonia, vinda do Novo Testamento, especificamente de Paulo, ao dirimi-la com caráter de comunhão divina; o Aquinate emprega-a também com o sentido de societas. Ele reúne o Filósofo e o Apóstolo, reconhecendo que o Novo testamento e o Filósofo visam à mesma realidade: a "comunhão".

Tomás de Aquino vai além, analisando o conceito de direito, cujo daria sustento a sociedade, portanto ele distingue dois tipos de direito: natural e positivo. Conforme afirmou:


O direito vem ser uma obra ajustada a outrem, segundo certo modo de igualdade. Ora, isso pode realizar-se de duas maneiras: em virtude da natureza mesma da coisa. Por exemplo, se alguém dá tanto para receber tanto; isso se chama o direito natural. Por convenção ou comum acordo. Por exemplo, quando alguém se dá por satisfeito de receber tanto. O que se pode dar de dois modos: primeiro, por uma convenção particular, quando pessoas privadas firmam entre si um pacto; segundo, por convenção pública, quando todo o povo consente que algo seja tido como adequado ou proporcionado a outrem, ou assim ordena o príncipe, que governa o povo e o representa. Isso se chama direito positivo. (Suma Teológica, I-II, Q. 57, art. II)

            Dado isto, ele desenvolve seu pensamento sobre a lei, pois, se há direito, necessariamente se tem leis. Para ele “a lei é certa regra ou medida dos atos, segundo a qual alguém é levado a agir, ou apartar-se da ação” (Suma Teológica, I-II, q. 90, a.1). Ele divide a lei em quatro, a saber: divina, natural, humana e do Evangelho.

            Por lei divina, o Aquinate concebe ser aquele que vem de Deus e cuja abrangência é tudo o quanto existe, segundo ele mesmo afirma:


Suposto que o mundo seja regido pela providência divina, é manifesto que toda a comunidade do universo é governada pela razão divina. E assim, a razão própria do governo das coisas em Deus, como existindo no príncipe do universo, tem razão de lei. (Suma Teológica, I-II, Q. 91, art. I)

            E como toda lei é promulgada tendo em vista um fim, a lei divina – que tem seu princípio em Deus – tem seu fim oportuno Nele, ou seja, “o fim do governo divino é próprio Deus, a lei eterna não se ordena a outro fim” (Suma Teológica, I-II, Q. 90, art. IV).

A lei natural seria a participação racional do homem na lei eterna, dado que:

Como todas as coisas estão sujeitas à providência divina, são reguladas e medidas pela lei eterna, é manifesto que todas participam, de algum modo, da lei eterna, enquanto impressão dessa têm inclinações para atos e fins próprios. E tal participação da lei eterna na criatura racional se chama lei natural. (Suma Teológica, I-II, Q. 91, art. II)

            Lei humana é forma de ordenar a lei natural para as coisas cujo ditame é referente aos homens.

Na razão especulativa de princípios indemonstráveis naturalmente conhecidos produzem conclusões cujo conhecimento não nos é inato, mas descoberto por esforço da razão, assim também dos preceitos da lei natural, é necessário que a razão humana proceda para dispor mais particularmente algumas coisas... pois, a origem do direito veio da natureza, depois algumas coisas vieram como costumes por aprovação da razão. (Suma teológica, I-II, Q. 91, art. III)

            Por fim, ele apresenta a lei do Evangelho, diferentemente das outras leis, esta não possui a dureza voluntarista, nem a exterioridade das outras, ela é uma obra da Sabedoria ordenadora, que é impelida pelo bem comum procedente do amor cujas justas vias são ensinadas pelas Escrituras Sagradas. A natureza lei toma uma força interior que em Tomás coincidir-se-á com a ação do Espírito Santo:

Aquilo que é principal na lei do Evangelho, e em que toda a virtude dela consiste, é a graça do Espírito Santo, que é dada pela fé em Cristo. E assim, principalmente a lei nova é a própria graça do Espírito Santo, que é dada aos fiéis de Cristo. (Suma Teológica, I-II, Q. 106, art. I)

            O doutor Angélico trata ainda das relações entre o estado e a Igreja, entre poder temporal e poder espiritual. Assim como ele pretendeu fazer com a teologia e a filosofia, visou para estes estados um equilíbrio de tendências divergentes, colocando o estado temporal, sendo aquele que é concebido como uma instituição natural, e como administrador dos bens temporais com a finalidade de garantir e assegurar o bem comum. Enquanto a Igreja, ou estado espiritual, seria dotada essencialmente para fins sobrenaturais. Vendo por esta óptica, o estado temporal não necessitaria subordinar-se à Igreja como um estado acima dele; sua subordinação limitar-se-ia aos vínculos existentes entre a ordem natural e sobrenatural, na medida em que esta última aperfeiçoa a primeira.

            Percebe-se, portanto, que das mais óbvias semelhanças entre as teorias políticas dos grandes filósofos como: Deus como princípio e finalidade, as virtudes como excelências para uma sociedade equilibrada e entre outras. Porém, nota-se sua divergência, como a forma das relações entre o estado temporal e o espiritual, enquanto Agostinho defendia que a Cidade dos homens deveria curvar-se à Cidade de Deus, Tomás de Aquino, dirá que a cada um compete fazer o que lhe é dado, porém, mantendo uma relação de aperfeiçoamento entre o temporal e o espiritual.



[1] GILSON, Etienne; BOEHNER, Philotheus. História da filosofia cristã. Petrópolis – RJ, Vozes, 2004. p. 195

[2] Ibidem. p. 196

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